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Foto do escritorEmmanuel do Valle

Malcolm Allison, o folclórico bon vivant símbolo de uma era de ouro do Manchester City


Amante do futebol (especialmente se bem jogado), das mulheres, dos charutos e de champanhe, Malcolm Allison foi um desses personagens singulares que se fizeram treinadores no futebol britânico. Foi o cérebro por trás do Manchester City mais vitorioso da história, o do fim da década de 1960, até o período recente de dinheiro a rodo. Contemporâneo de Brian Clough, compartilhava com ele o gosto por frases de efeito e declarações ácidas. Mas se o ex-técnico de Derby e Nottingham Forest teve carreira mais estável e vencedora, Big Mal ostentava um perfil “bon vivant” único, que rendeu inúmeras histórias memoráveis para o folclore do jogo no país e até no exterior – como em Portugal, onde também foi campeão.


Nascido na cidade de Dartford, em Kent, poucos quilômetros ao sudeste de Londres, viveu tempos de privação na adolescência em meio à capital britânica em destroços durante a Segunda Guerra Mundial. Embora fosse um jovem articulado e confiante, a carreira de jogador também não começou de maneira muito auspiciosa. Allison chegou ao Charlton em 1945, mas durante todo o período de sete anos em que esteve por lá entrou em campo apenas duas vezes. O clube vivia um período vitorioso (conquistou a FA Cup em 1948 e contava com vários jogadores de seleção no elenco), mas as “lições” maiores que recebeu por lá foram como não trabalhar a parte tática e não se relacionar com os atletas.


Em 1951, irritado com os métodos de treinamento vigentes, reclamou com o treinador de campo que as atividades eram ultrapassadas e se resumiam a corridas e a disputar o que os brasileiros chamam de “rachão”. Foi instado a falar com o ‘manager’ Jimmy Seed, que o repreendeu e o informou que ele estava negociado. Ao que Mal respondeu ironicamente: “Posso te cumprimentar, Sr. Seed? Muito obrigado por me ensinar a arte da comunicação, pois essa é a terceira vez em que você me dirige a palavra em sete anos”.


Transferiu-se então para o West Ham, clube que na época ocupava um patamar inferior, mas vinha iniciando uma reputação de formar talentos. Em Upton Park, a vida foi bem diferente. Malcolm tinha a liberdade de conversar sobre táticas até com os colegas de time, como Noel Cantwell. E teve seu valor como jogador reconhecido, ao disputar mais de 200 partidas na zaga dos Hammers.


Nos últimos tempos, aliás, teve ao seu lado um garoto que demonstrava muito futuro, apesar do ceticismo dos dirigentes. “Malcolm me ensinou tudo o que eu sei. Apostou em mim num momento em que ninguém mais no clube tinha me visto como algo especial. Eu o admirava muito. Não é forte demais dizer que eu o adorava”, diria mais tarde Bobby Moore, o tal garoto.


Malcolm ficou no West Ham até 1958, quando, aos 31 anos, uma tuberculose lhe custou parte de um dos pulmões e a carreira de jogador, justamente quando os Hammers enfim conquistariam o acesso à elite. Ficar longe do jogo, entretanto, era fora de cogitação para o homem que, quando garoto, levou bomba de propósito nos exames admissionais para a chamada “grammar school” (espécie de instituição educacional de ensino médio de perfil mais acadêmico) porque preferia continuar na escola secundária comum, onde se praticava futebol em vez de rúgbi.


Enquanto procurava se reinserir no mundo do esporte, teve ocupações bem ao seu estilo. Foi vendedor de carros, apostador profissional e dono de clube noturno. Até ser chamado para treinar o time da Universidade de Cambridge, passando posteriormente ao Bath City, da chamada “non league”. Após um breve período na América do Norte, onde treinou o Toronto City, retornou à Inglaterra e começou a chamar a atenção no comando do Plymouth Argyle, clube da quarta divisão ao qual levaria às semifinais da Copa da Liga na temporada 1964-65.


Com Joe Mercer, uma parceria inesquecível para os torcedores do City.

O feito também repercutiu mais ao norte. Ao fim daquela temporada foi recrutado pelo Manchester City como assistente do também recém-contratado técnico Joe Mercer, que tinha problemas de saúde (havia infartado um ano antes) e precisava de um auxiliar para comandar os treinamentos. Na segunda divisão desde 1963, os Citizens também não levantavam um troféu desde a conquista da FA Cup de 1956. Mas, graças à dupla Mercer-Allison, embarcariam em seu período mais vitorioso até então, e jogando um futebol vistoso, refinado, de troca de passes e muita habilidade.


A parceria com Mercer, um ex-zagueiro do Everton e do Arsenal, 13 anos mais velho que ele, e que tinha com o auxiliar uma relação de irmão mais novo, foi descrita assim por Allison: “Ninguém no futebol poderia conviver conosco. Entre nós, tínhamos tudo. Eu enfrentava as situações como um touro, cheio de ambição agressiva e desprezo por qualquer um que pudesse ficar no meu caminho. E Joe vinha atrás de mim, catando os cacos, aliviando os feridos e os ofendidos com aquele vasto charme”.


Mais ou menos por essa época, Allison publicou um livro chamado “Soccer For Thinkers”, onde expunha sua filosofia de jogo, a qual vinha desenvolvendo desde os tempos de jogador, quando foi a Wembley assistir in loco a histórica seleção húngara quebrar a longa invencibilidade inglesa no estádio com uma vitória esmagadora por 6 a 3. Encantado com a exibição, dali em diante passou a defender ardorosamente um estilo de jogo coletivo, mas que tivesse como finalidade fazer o talento individual florescer e sobressair, e não amarrar os jogadores mais criativos e habilidosos a esquemas rígidos. Ficou reconhecido como um dos mais imaginativos treinadores ingleses de seu tempo, e de todos os tempos.


O acesso com o Manchester City veio logo na primeira temporada. Dois anos depois, em 1968, contra todos os prognósticos, o clube conquistava a liga numa disputa acirrada com o arquirrival United definida apenas na última rodada – e isso numa temporada em que os Red Devils de George Best, Bobby Charlton e Denis Law venceriam a Copa dos Campeões. Durante a campanha, o City obteria uma memorável vitória por 3 a 1 no derby disputado em Old Trafford. Antes do jogo, Big Mal aprontou das suas: contratou um alpinista para, na calada da noite, escalar os muros do United e descer a bandeira do rival a meio mastro. “Eles (os dirigentes vermelhos) só perceberam dias depois”, divertia-se o treinador.


Mas nem só de brincadeiras era feito o trabalho de Malcolm Allison. Ainda que, injustamente, grande parte do trabalho e das conquistas da dupla sejam atribuídos muitas vezes apenas a Mercer, era ele o responsável pela parte tática, por comandar os intensos treinamentos (“treinávamos tão duro que o jogo parecia um dia de folga”, relembrou o atacante Mike Summerbee, um dos principais jogadores daquela equipe), por lidar com os jogadores e ainda recomendar contratações. Além de ser um excepcional motivador.


Em Wembley, exibindo a Copa da Liga recém-conquistada.

Ao título da liga – o segundo da história do clube, pondo fim a um jejum de 31 anos – seguiram-se as conquistas da FA Cup em 1969 e da Copa da Liga e da Recopa Europeia em 1970, nas quais brilhou o futebol de jogadores históricos do clube, como Francis Lee, Colin Bell e o já citado Mike Summerbee. Faltou o título da Copa dos Campeões, mas não foi por falta de bravata: “Nós vamos aterrorizar os covardes da Europa”, disse Big Mal com o caneco inglês ainda nas mãos antevendo a campanha continental da temporada seguinte – e o City caiu ainda no primeiro mata-mata, diante do Fenerbahçe.


Mesmo um tanto eclipsado por Mercer e conhecido por não ter papas na língua, sua reputação de estrategista atravessou o Canal da Mancha, espalhando-se pela Europa. Em 1969, a Juventus queria contratá-lo de qualquer jeito. Após conversas secretas na Inglaterra, travadas às vésperas da conquista da FA Cup, foi levado a Turim para conversar, com liberdade para pedir o que quisesse no contrato. Enquanto pensava, curtiu férias em Roma e na Riviera francesa. Mas acabou declinando a proposta em consideração aos jogadores do City – e também na expectativa de que os dirigentes mancunianos o promovessem de posto. Ficou, mas não foi atendido.


Desgastada, a parceria no banco de reservas com Joe Mercer terminou em 1971, quando o ‘manager’ assumiu brevemente funções administrativas dentro do clube e logo em seguida saiu para dirigir o Coventry. Malcolm enfim obteve sua ansiada ascensão de posto, e conduziu um brilhante time do City que se colocou como candidato sério a mais um título da liga. Até que uma extravagância do treinador pôs tudo a perder.


Big Mal insistiu na contratação do atacante Rodney Marsh, do Queens Park Rangers, o qual considerava a peça que faltava na equipe, pela capacidade de reter a bola no ataque. A escalação de Marsh, um ponteiro de enorme habilidade e velocidade, implicava, no entanto, na exclusão de Mike Doyle, capitão, prata da casa e um dos jogadores mais combativos da equipe. Desmantelada, a equipe começou a ratear na fase decisiva do campeonato, abrindo espaço para a primeira conquista de um treinador de personalidade algo semelhante à de Allison: Brian Clough, do Derby County.


Mesmo assim, até o fim da vida, o treinador defendeu a contratação: “Eu acreditava no toque de espetáculo de Marsh. Se você perguntasse aos torcedores do Manchester City hoje se eu fiz a coisa certa em assinar com Marsh, eles o responderiam um firme ‘sim’. Eles aprenderam a viver com suas extravagâncias, suas inconsistências. Isso é, afinal, o preço que se paga pela promessa da magia”.


Em 1973, o técnico deixou o City retornando à sua Londres. Comandaria o Crystal Palace, um clube de bairro, discreto, opaco, sem charme, perfeito para sofrer uma revolução. Allison atraiu uma considerável mídia para o time: mudou um pouco as cores (substituindo o grená pelo vermelho), o desenho da camisa e o apelido (de “The Glaziers” para “The Eagles”). Após os treinos, saía para beber com os jornalistas – e deixava a conta para que eles pagassem. Também levou o clube da primeira para a terceira divisão, mas para os torcedores isso não importou tanto. Seria como um clube da antiga Division Three que o Palace levaria adiante uma campanha inesquecível na FA Cup de 1976.


Depois de passar pelo amador Walton & Hersham, pelo Millwall e pelo Scarborough, o clube começou a fazer estragos ao cruzar com times mais fortes. Primeiro foi o Leeds, então vice-líder na elite, batido dentro de Elland Road. Depois seria a vez do Chelsea, derrotado em Stamford Bridge. Nas quartas de final, o adversário seria o Sunderland (futuro campeão da segunda divisão), vencido em Roker Park. A trajetória surpreendente do Palace só seria contida nas semifinais, diante de outra sensação do torneio, o Southampton, que viria a conquistar o título batendo o Manchester United na final.


Big Mal provoca a torcida do Chelsea após eliminá-los na FA Cup em 1976.

Foi durante esta campanha que Big Mal lançaria um acessório pelo qual ficaria celebrizado: por superstição, passaria a usar um chapéu no estilo “fedora” (semelhante ao “panamá”). A imagem de Allison, de casaco de pele e com a peça na cabeça, mostrando três dedos para a torcida do Chelsea em referência à vitória do Palace por 3 a 2 em Stamford Bridge seria imortalizada. Em 2007, a torcida dos Águias criou o evento “Fedora Day”, para homenagear o treinador. Além do acessório, o tributo foi marcado pela farta distribuição de outras duas paixões de Big Mal: charutos e champanhe.


A passagem pelo Palace também foi marcada por outro episódio que entraria para o anedotário do técnico: o dia em que recebeu a visita da atriz pornô Fiona Richmond nos vestiários após uma partida. Enquanto os jogadores se escondiam das câmeras com medo da repercussão, Big Mal convidou Fiona para conhecer a banheira, deixando-se fotografar. Multado pela FA por ‘comportamento inadequado’, pediu as contas em Selhurst Park logo depois a campanha histórica na copa. Em seguida embarcaria para a Turquia, onde comandaria brevemente o Galatasaray. De volta à Inglaterra, passaria novamente por alguns de seus antigos clubes: Plymouth, Manchester City e Crystal Palace, sem sucesso.


A volta ao City, concretizada pelo presidente Peter Swales, renderia mais alguns bons capítulos de folclore entre julho de 1979 e outubro de 1980. Ao chegar, recebeu carta branca e recursos financeiros generosos para reformular o elenco e tentar trazer de volta os bons tempos a Maine Road. Como poupar dinheiro não era de seu feitio, tratou mesmo de gastar, batendo o recorde britânico de transferências por um garoto, Steve Daley, do Wolverhampton. Pela porta dos fundos, entretanto, saíam jogadores formados no clube e pelos quais a torcida tinha carinho, como Peter Barnes e Gary Owen.


Com Peter Swales, mandatário do City: uma relação turbulenta.

A segunda passagem de Big Mal pelo City seria um desastre, simbolizado pela vexatória eliminação na FA Cup diante do Halifax Town, da quarta divisão, e retratado no documentário “City! A Club In Crisis”, de 1981. A relação com Swales também sempre foi tensa: “Quando eu olhei para ele e vi aquele penteado, o paletó e os sapatos de camurça, pensei: ‘Isso não vai dar certo’”, debocharia o treinador, relembrando o primeiro contato que teve com o mandatário. Ao sair, bateria boca publicamente com seu substituto após comentários do novo treinador sobre sua intimidade: “John Bond manchou meu nome com suas insinuações sobre a vida privada dos técnicos de futebol. Minhas duas esposas estão envergonhadas”.


Antes de se embrenhar em trabalhos cada vez mais melancólicos nas divisões inferiores em equipes como o Yeovil Town, o Bristol Rovers e o Middlesbrough (de onde seria demitido após afirmar que o clube, enfrentando sérias dificuldades financeiras, deveria simplesmente fechar as portas), Big Mal teria ainda uma passagem consagradora fora do futebol inglês, mais exatamente em Portugal, levando o Sporting à dobradinha nacional em 1982 – um dos três únicos títulos leoninos na liga nos últimos 36 anos.


Após a conquista, o Sporting foi a Paris para um amistoso. “Depois do jantar, retornamos ao hotel às duas da manhã, e eu lhe perguntei: ‘A que horas temos que acordar amanhã?’. Ele respondeu: ‘Hoje ninguém vai dormir. Vamos beber em Paris. Já fomos campeões. Agora temos de nos divertir e conviver uns com os outros’. Voltamos às seis da manhã”, relembrou o atacante Manuel Fernandes ao jornal “Público”.


A bebida supostamente teria sido o motivo de sua controversa demissão, pouco tempo depois do título. Mas para António Oliveira, zagueiro daquela equipe e futuro treinador, os cartolas na verdade buscavam um pretexto para sacar o treinador, já que estavam acertados com o tcheco Josef Venglos. Allison ainda retornaria a Portugal mais adiante naquela década, comandando o Vitória de Guimarães (no qual teria contato com um jovem aspirante a treinador chamado José Mourinho) e o Farense. Também teria rápida passagem dirigindo a seleção do Kuwait.


Tão movimentada quanto sua carreira de treinador foi sua vida amorosa. Casado por três vezes (e pai de seis filhos), teve ainda vários relacionamentos tão fugazes quanto cintilantes, que incluíam uma coelhinha da Playboy, duas Miss Reino Unido e Christine Keeler, pivô do Caso Profumo, escândalo sexual que abalou o governo britânico no começo dos anos 60. Costumava dizer que a doença nos pulmões, o maior baque que sofreu na vida por impedir definitivamente de fazer o que mais gostava, provocou nele o desejo de aproveitar a vida ao máximo, em todos os sentidos.


Após todos os anos de ostentação vividos em seu tempo de treinador, Malcolm Allison morava em um abrigo para idosos quando faleceu, em outubro de 2010, aos 83 anos, fragilizado pelo alcoolismo e pela depressão. Seu cortejo fúnebre em Manchester foi acompanhado por centenas de torcedores do City. Em sua lápide foi pendurado um cachecol azul claro do clube. E ao lado dele, colocados uma garrafa de Moët Chandon e um balde de gelo. Um brinde, Big Mal.


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