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Foto do escritorEmmanuel do Valle

Os 60 anos de David O'Leary, recordista em partidas pelo Arsenal



Na relação dos dez jogadores que mais vestiram a camisa do Arsenal na história, duas gerações de ídolos polarizam os nomes. Um deles é o grupo que conquistou a dobradinha nacional em 1971 (e a Copa das Feiras europeia no ano anterior), representado por Peter Simpson, John Radford, Peter Storey, Pat Rice e o antigo detentor do recorde, George Armstrong. O outro, mais recente, é o que compôs regularmente a defesa do time por mais de uma década, pelos anos 90 afora.


O primeiro colocado, no entanto, pertence a uma outra geração, mas jogou com gente de ambos os lados, já que permaneceu em Highbury durante 20 anos, entre meados da década de 1970 e o começo da de 1990. Aprendeu com uns e ensinou a outros o que representava vestir uma das camisas mais tradicionais da Inglaterra. Mas sempre sem fazer alarde. Completando 60 anos nesta quarta, David O‘Leary primou sempre por um estilo discreto, mas eficiente e sobretudo elegante em suas 722 partidas pelos Gunners.


O COMEÇO EM HIGHBURY


Nascido em Londres, filho de irlandeses, deixou a capital britânica e retornou ao país de origem da família ainda aos três anos. Por lá, ficou até os 15, quando deixou as categorias de base do Shelbourne para tentar a sorte no Manchester United, clube de forte ligação com jogadores da ilha vizinha. No entanto, não foi aproveitado e seguiu de armas e bagagem de novo para a cidade onde nascera, com destino ao Arsenal. Passou nos testes e foi prontamente integrado ao time juvenil. Era 1973.


Dois anos depois, foi promovido ao elenco principal ao início da temporada 1975-76, a derradeira do carismático Bertie Mee no comando dos Gunners. Sua estreia no time de cima veio logo na primeira rodada do campeonato, em 16 de agosto, contra o Burnley fora de casa. O Arsenal não faria grande campanha na liga, mas a atuação do jovem zagueiro naquele empate sem gols no Turf Moor agradou, e ele se manteve entre os titulares por boa parte da competição, totalizando 27 partidas.


John Murphy, David O'Leary, Frank Stapleton e Liam Brady: quatro garotos de origem irlandesa em busca de um lugar ao sol em Highbury naquele 1973.

Aquela equipe do Arsenal já contava com dois norte-irlandeses nas laterais (Pat Rice na direita e Sammy Nelson na esquerda) e havia recentemente contratado outro irlandês para o centro da defesa (Terry Mancini, ex-Queens Park Rangers). Mas O’Leary também teria compatriotas como colegas de geração no time: assim como ele, o talentoso meia Liam Brady e o impetuoso atacante Frank Stapleton também eram jovens, de nacionalidade irlandesa e recém-oriundos das categorias inferiores.


Em setembro de 1976, ainda aos 18 anos, o zagueiro faria sua estreia na seleção em um amistoso contra a Inglaterra em Wembley, que terminou empatado em 1 a 1. Confiando no potencial do garoto, o meia Johnny Giles (que exercia a função de jogador-técnico da Irlanda) manteve-o no time para as Eliminatórias da Copa de 1978, nas quais a equipe mediria forças com França e Bulgária. Na seleção, O’Leary também teria a companhia de Liam Brady e Frank Stapleton.


COMANDANDO A ZAGA DE UM ARSENAL “COPEIRO”


Naquele momento, Terry Neill já havia assumido o comando do Arsenal, iniciando uma renovação no envelhecido elenco e contando com O’Leary como um dos pilares da nova fase. Aos poucos os resultados começaram a aparecer: de um fraco 17º lugar em 1975-76, a equipe pulou para a oitava colocação na primeira temporada com o novo técnico, melhorando ainda mais nas quatro campanhas subsequentes. Além disso, o Arsenal entraria numa fase “copeira”, alcançando quatro finais de taças (três inglesas e uma europeia) entre 1978 e 1980, sempre com o zagueiro irlandês em campo.


Depois de ser surpreendido na final da FA Cup de 1978 pelo Ipswich de Bobby Robson, o time retornou a Wembley no ano seguinte. No caminho, uma incrível série de jogos contra o Sheffield Wednesday, decidida apenas no quarto replay, e uma vitória sobre o Nottingham Forest (então a caminho de seu primeiro título na Copa dos Campeões) dentro do City Ground. Mas nada comparável em termos de emoção à final contra o Manchester United, na qual os Gunners abriram 2 a 0 no primeiro tempo, cederam o empate com dois gols nos cinco últimos minutos, mas ainda arrancaram a vitória por 3 a 2 na última volta do ponteiro.


O título valeu uma participação na Recopa europeia, ao mesmo tempo em que o clube de Londres voltava a Wembley para uma terceira final consecutiva na FA Cup. Em ambos os torneios, duas semifinais memoráveis: na taça inglesa, depois de sete horas e meia de futebol (quatro jogos, sendo três com prorrogação), a equipe eliminou o Liverpool. Já na competição continental, os Gunners perdiam para a Juventus em Highbury até os 39 minutos da etapa final, quando empataram graças a um gol contra do atacante Roberto Bettega. E na volta, em Turim, o jovem Paul Vaessen marcaria o único gol do jogo – o da classificação dos londrinos – a dois minutos do fim.


Vigiando Mario Kempes na final da Recopa de 1980, perdida nos pênaltis para o Valencia.

Na final da Recopa, O’Leary e seu parceiro de zaga, o vigoroso Willie Young, teriam a missão de parar o argentino Mario Kempes, centroavante do Valencia. No tempo normal e na prorrogação até conseguiram. O jogo terminou num empate sem gols ao fim de 120 minutos de ação. Mas nos pênaltis, embora o próprio Kempes desperdiçasse sua cobrança, os Ches acabaram vencendo por 5 a 4. Outra decepção viria na FA Cup, com derrota para o West Ham (então na segunda divisão) por 1 a 0, gol de Trevor Brooking.


A AFIRMAÇÃO


Mas a grande fase do irlandês não passou sem o devido reconhecimento: tanto em 1978-79 quanto em 1979-80, ele foi escolhido para a seleção da temporada, eleita pela Associação dos Jogadores Profissionais. Presença certa no centro da defesa dos Gunners, O’Leary já era um dos nomes mais queridos da torcida, que o apelidou de “Spider” (“aranha”) pelas pernas compridas (que, ao contrário do que se imaginaria, não prejudicavam sua agilidade) e pela precisão com que desarmava o adversário, sempre limpo, na bola.


No entanto, o desgaste físico provocado pela extenuante temporada de 70 jogos (que incluiu muitos mata-matas, alguns com prorrogação) em 1979-80 cobrou seu preço na campanha seguinte: uma sequência de lesões a partir do início de outubro fez com que David O’Leary atuasse apenas em 24 das 42 partidas do Arsenal na liga, seu número mais baixo desde que se tornara titular. Por ironia, naquela temporada 1980-81 os Gunners fariam sua melhor campanha desde sua chegada, terminando na terceira colocação.


As lesões também o tiraram de parte da campanha da seleção irlandesa nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1982, quando a equipe comandada por Eoin Hand ficou a um ponto de ir à Espanha. O’Leary já vinha firme como titular desde a fase de classificação para o Mundial anterior, na Argentina, e prosseguiu na etapa qualificatória para a Eurocopa de 1980. Mas a Irlanda, que então nunca havia disputado um grande torneio internacional, ficou de fora em todos eles – mas em breve isso mudaria.


O Arsenal, por sua vez, também passou a viver mau momento, acumulando campanhas medíocres (o escritor inglês e torcedor dos Gunners Nick Hornby lembra em seu livro “Febre de Bola” que a trajetória do time ao longo daquela década se assemelha a uma curva em U), que culminariam na saída de Terry Neill em 1983. E, exceto por um ótimo início de campanha em 1984-85, quando a equipe ficaria na liderança da liga por algum tempo, o período de seu sucessor, Don Howe, no cargo também não foi feliz.


O'Leary é homenageado num amistoso contra o Celtic em Highbury, em agosto de 1986.

A redenção viria com a contratação do escocês George Graham (ex-meia do time da dobradinha de 1971) em maio de 1986, dois meses depois da demissão de Howe. O time fez uma ótima primeira metade da temporada 1986-87, chegando a somar 17 partidas de invencibilidade e a liderança na virada do ano graças em parte a uma defesa sólida comandada por O’Leary, formando dupla de zaga com o novato ascendente Tony Adams. E embora tivesse despencado e terminado em quarto ao fim do campeonato, salvou a temporada com o título da Copa da Liga contra o Liverpool – a primeira taça desde a FA Cup de 1979.


ENFIM, O TÍTULO DA LIGA


Na campanha seguinte, uma lesão de tornozelo voltou a tirá-lo de ação por um bom tempo e começou a indicar o fim de sua carreira. Sem ele em campo na final, o Arsenal deixaria escapar o bi da Copa da Liga ao ser batido em Wembley pelo Luton. Mas no ano seguinte, O’Leary e o clube alcançariam algo muito maior: o título inglês que encerrou o jejum que já durava 18 anos. O irlandês começaria jogando na zaga em quatro das cinco primeiras partidas da campanha, mas seus problemas físicos trouxeram Steve Bould (contratado ao Stoke no início da temporada) de volta à equipe ao lado de Tony Adams.


Até que, na rodada de Boxing Day, surgiu uma nova brecha na lateral direita, em substituição a Lee Dixon, que também se lesionara. Foram três boas atuações (entre eles um 3 a 0 no Aston Villa fora e um 2 a 0 no Tottenham em Highbury), que o credenciaram a um lugar no time, fosse no miolo de zaga ou pelo lado. Dali em diante, O ‘Leary seria titular em todos os jogos, até o fim da campanha.


E inclusive numa nova função: no começo de abril, o técnico George Graham resolveu experimentar uma formação com um líbero atrás da linha de quatro zagueiros, e escolheu o irlandês, com seu ótimo posicionamento, saída de bola e leitura de jogo, para a posição. O time empatou em 1 a 1 com o Manchester United em Old Trafford, mas permaneceu sem sofrer gols nos quatro jogos seguintes da liga. Até ameaçou botar tudo a perder com dois tropeços em casa diante de Derby e Wimbledon, mas bateu o Liverpool num jogo histórico e dramático em Anfield por 2 a 0 para levantar o título.


O renascimento temporário do veterano O’Leary, já com 31 anos, foi estendido pela temporada 1989-90 adentro devido aos problemas físicos que agora acometiam Bould. O irlandês atuou 28 vezes pelo campeonato como titular e viveu uma tarde especial em 4 de novembro de 1989, na vitória por 4 a 3 sobre o Norwich em Highbury, quando atingiu a marca de 622 jogos oficiais pelo clube, superando o recorde de George Armstrong, e ainda marcou seu primeiro gol na liga desde maio de 1983. Mas, sem títulos com os Gunners desta vez, sua grande alegria viria após a temporada, defendendo a seleção irlandesa.


NA SELEÇÃO, SÍMBOLO DE MOMENTO HISTÓRICO


Depois de ter sofrido com a concorrência de novos nomes para a zaga da Irlanda, como Mark Lawrenson (Brighton, depois Liverpool), Mick Martin (Newcastle) e Kevin Moran (Manchester United), e ter atuado com menos assiduidade nas Eliminatórias para a Eurocopa de 1984, O’Leary retomou a titularidade na fase de classificação para a Copa de 1986, na qual a equipe fez campanha fraca, levando à saída de Eoin Hand, substituído por Jack Charlton, ex-zagueiro campeão do mundo com a Inglaterra em 1966.


Com Charlton, O’Leary começou tendo problemas. Ignorado nas primeiras convocações, viu-se em meio a uma polêmica em meados de 1986. A Irlanda disputaria um torneio amistoso na Islândia e subitamente viu-se repleta de desfalques por lesão. Charlton, que mais uma vez havia prescindido do zagueiro na lista inicial, decidiu recorrer a ele para suprir as baixas. Foi então a vez de O’Leary recusar a convocação, alegando já ter acertado uma viagem de férias com a família, a qual não pretendia desmarcar.


O resultado do mal-entendido é que o zagueiro ficou na geladeira da seleção por dois anos, perdendo a histórica estreia dos irlandeses numa competição internacional na Eurocopa de 1988, quando derrotaram os ingleses no primeiro jogo e estiveram a poucos minutos de avançarem às semifinais no lugar da futura campeã Holanda. Só depois disso é que veio a trégua entre O’Leary e Charlton, com o zagueiro atuando em quatro dos oito jogos das Eliminatórias para a Copa de 1990 como titular – dois dias após se sagrar campeão inglês batendo o Liverpool, já estava de novo em campo para enfrentar Malta em Dublin.


No Mundial da Itália, O’Leary esteve em campo por apenas 24 minutos de bola rolando, entrando no começo da prorrogação do jogo contra a Romênia, pelas oitavas de final. Mas acabaria se tornando um dos grandes personagens daquela campanha histórica ao converter o quinto e último pênalti da Irlanda na série decisiva, após o goleiro Bonner ter defendido a cobrança do romeno Daniel Timofte. “A nação prende a respiração”, disse o narrador George Hamilton, da emissora irlandesa RTÉ. E lá foi O’Leary, com um chute inapelável, colocar o time de Jack Charlton nas quartas de final.


Na temporada seguinte à Copa, O ‘Leary voltaria a comemorar a conquista do campeonato inglês com o Arsenal, mas desta vez atuando bem menos: apenas 11 partidas como titular, além de outras dez entrando no decorrer dos jogos. O número de presenças seria mais ou menos o mesmo em 1991-92, porém desta vez não houve conquistas. Mas na subsequente, o Arsenal faria uma inédita dobradinha copeira, vencendo a FA Cup e a Copa da Liga, ambas em cima do Sheffield Wednesday. E em ambas com O’Leary em campo.


De todas as 59 partidas disputadas pelos Gunners no somatório de competições daquela temporada – que seria a derradeira do zagueiro em Highbury –, ele entrou em campo em apenas 17, sendo nove como titular. Mas esteve no lugar certo e na hora certa. Em 18 de abril de 1993, lá estava ele na lateral-direita do time que derrotou os Owls de virada na decisão da Copa da Liga por 2 a 1. Em 15 de maio, lá estava ele entrando no lugar de Ian Wright para melhorar a cobertura defensiva do Arsenal antes do início do tempo extra no empate em 1 a 1 do primeiro jogo da decisão da FA Cup.


E cinco dias depois, lá estava ele de novo, mais uma vez entrando no lugar de Wright (só que agora a nove minutos do fim do tempo normal), no replay da final. O novo empate em 1 a 1 nos 90 minutos levou a partida para outra prorrogação, vencida pelos Gunners com um gol dramático de Andy Linighan nos últimos segundos da etapa final. Foi a 722ª e última partida oficial de competição de David O’Leary pelo Arsenal, encerrando duas décadas de vínculo com o clube da melhor maneira possível, de taça na mão.


Com o goleiro David Seaman, festejando a conquista da FA Cup em 1993.

Aos 35 anos, no entanto, ainda não era a hora de pendurar as chuteiras: o zagueiro seguiu para o Leeds, pelo qual atuou apenas 14 vezes em duas temporadas antes de dizer adeus oficialmente em setembro de 1995. Permaneceu em Elland Road como auxiliar técnico, estendendo a relação a uma boa passagem como treinador entre 1998 e 2002, no último grande momento dos Whites na elite. Seus laços com o Arsenal, no entanto, acabariam prevalecendo: desde 2014, O'Leary trabalha como embaixador do clube.

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