Negócio de ocasião: há 40 anos, o Chelsea era comprado por 1 libra
- Emmanuel do Valle
- 3 de abr. de 2022
- 16 min de leitura

A decisão da Premier League de retirar do russo Roman Abramovich sua licença para ser dono do Chelsea, após o governo britânico ter congelado seus bens no contexto do conflito entre Rússia e Ucrânia, deixa no ar uma certa indefinição quanto ao futuro do clube. E este cenário remete ao vivido pelos Blues há exatos 40 anos, em abril de 1982, quando uma agremiação dilapidada financeiramente, com seu estádio alienado, sem rumo na segunda divisão e marcada por atos de hooliganismo de grupos de seus torcedores acabou vendida ao controvertido empresário Ken Bates pelo valor simbólico de £1 (uma libra).
Contamos aqui todo o caminho que levou o tradicional clube londrino às portas da falência no início daquela década e também como conseguiu sair dele, reerguendo-se para, já no fim dos anos 1990, voltar a figurar entre as potências do futebol inglês na era Premier League. Pouco antes de ser novamente vendido – desta vez ao próprio Abramovich.
A BOLHA FINANCEIRA DO FUTEBOL INGLÊS
As relações de trabalho entre jogadores e clubes de futebol no Reino Unido passaram por uma revolução a partir de abril de 1978, quando entrou em vigor uma nova legislação, estabelecendo a chamada “liberdade de contrato”. A medida concedia ao jogador, pela primeira vez na história do país, o direito de recusar propostas de renovação com o clube em que atuava e, neste caso, mudar de camisa por um valor a ser estipulado pelas agremiações ou por um tribunal. Um avanço há muito tempo aguardado.
A lei vinha atender a pressões da Uefa e da Comunidade Europeia (atual União Europeia), para a qual o Reino Unido havia entrado em 1973. Era imperioso, segundo essas entidades, que o país se adequasse em todas as áreas às regras vigentes dentro destes grupos. Por outro lado, a medida removia mais um “freio” utilizado para tentar preservar o equilíbrio econômico entre os clubes da Football League. O resultado foi o início de uma escalada nos valores de transferências de jogadores dentro do país.
Demorou apenas nove meses para que a cifra de meio milhão de libras fosse ultrapassada pela primeira vez numa transferência entre clubes ingleses: no dia 7 de janeiro de 1979, era anunciada pelo West Bromwich Albion, clube ascendente dirigido pelo ambicioso treinador Ron Atkinson, a contratação do atacante David Mills, do Middlesbrough, por £516 mil, quantia que estabelecia o novo recorde nacional. O que ninguém imaginava era que a marca seria superada – e dobrada – dentro de tão pouco tempo.
Em 9 de fevereiro, era a vez de outro clube ascendente com treinador ambicioso, o Nottingham Forest de Brian Clough, apresentar o meia-atacante Trevor Francis, contratado ao Birmingham por um valor que, incluindo taxas e impostos, alcançava estratosféricos £1,18 milhão – embora Clough tivesse sempre afirmado que a soma real ficou em £999.999, para tirar dos ombros do jogador o peso da movimentação econômica feita para trazê-lo, e embora seu ex-clube tivesse recebido “apenas” £950 mil.
Com a porteira aberta, as transferências milionárias proliferaram. E o valor pago pelo Nottingham Forest, tido como exorbitante, foi superado nada menos que duas vezes só naquele ano de 1979. Na verdade, em questão de dias: em 5 de setembro, o Manchester City surpreendeu ao pagar £1,437 milhão ao Wolverhampton pelo meia Steve Daley, de 26 anos e que sequer havia defendido a seleção. A transação seria considerada mais tarde “o maior desperdício de dinheiro na história do futebol”.

Os Wolves pegaram o dinheiro e, apenas três dias depois, bateram à porta do Aston Villa. Saíram de lá com o centroavante escocês Andy Gray, contratado pela bagatela de £1,469 milhão – o novo recorde do país. Dirigido pelo falastrão Malcolm Allison, o Manchester City voltava à carga em março de 1980 ao enfim convencer o Norwich a vende-lo o atacante Kevin Reeves por £1,250 milhão. Se não batia o recorde, o valor fazia o total de gastos do clube com reforços alcançar a cifra de £5 milhões.
Nos 18 meses que se seguiram à contratação de Trevor Francis pelo Nottingham Forest, quase uma dezena de transferências igualaram ou superaram o milhão de libras. Algumas simbólicas: o primeiro jogador sub-20 de £1 milhão (o atacante Clive Allen, que trocou o Queens Park Rangers pelo Arsenal), o primeiro defensor (Kenny Sansom, do Crystal Palace para o Arsenal, numa negociação que também envolveu Allen) e o primeiro jogador negro (o atacante Justin Fashanu, do Norwich para o Forest).
A gastança, obviamente, não se resumia a valores de transferências. Da temporada 1979-80 para a de 1980-81, a folha salarial total dos clubes da Football League foi inflacionada em cerca de 45% (bem acima dos 20% de aumento no índice geral de preços no período). Mas o grande problema era o contraste brutal desse universo esbanjador com a realidade enfrentada pelo país no mesmo período, de recessão econômica e indicadores sociais em declínio naquele início do governo de Margaret Thatcher.
O auge dessa crise viria em 1982. Em janeiro daquele ano, o número de desempregados no Reino Unido superou a casa de 3 milhões pela primeira vez desde os anos 1930. Em setembro, mesmo com o aquecimento da indústria naval nas cidades portuárias experimentado meses antes, no contexto da Guerra das Malvinas, a taxa atingiria seu recorde histórico: 14% da população economicamente ativa do país estava sem trabalho. O futebol, esporte de massa, previsivelmente sentia todos os efeitos.
Num tempo sem patrocínios máster nas camisas e em que o dinheiro da televisão era ínfimo e dividido igualmente entre todos os 92 clubes da Football League, a principal fonte de arrecadação ainda eram as rendas de bilheteria. E elas vinham em queda naquela virada de década. No seu ápice histórico desde a Segunda Guerra Mundial – a temporada 1948-49 – a média de público total da liga fora de 22.333 torcedores por jogo. Já em 1981-82, ela despencara para menos da metade: 9.865 por partida.
O futebol na era do milhão de libras criara uma bolha financeira. A má governança da maioria dos clubes somada à recessão econômica do país e ao hooliganismo cada vez mais presente e violento (os dois últimos, fatores que contribuíam para afastar o público dos estádios) levariam essa bolha a estourar. Quando os dirigentes acordaram, a quebradeira foi geral. Com todos os 92 da Football League operando no vermelho (até o supercampeão Liverpool), não foram poucos os casos de clubes à beira da insolvência.
Foi o caso do Bristol City, tendo de arcar com gastos exagerados feitos durante seu curto período de quatro anos na primeira divisão entre 1976 e 1980. Em fevereiro de 1982, o clube escapou de ter de fechar as portas a minutos do fim do prazo para negociar suas dívidas (avaliadas em £1,5 milhão) quando conseguiu fazer com que oito atletas aceitassem rescindir seus contratos. Entre outros clubes salvos da falência nos últimos instantes, estiveram o Wolverhampton (em agosto de 1982) e o Middlesbrough (em agosto de 1986).
O DECLÍNIO DE UM CLUBE PROMISSOR
Ironicamente, a crise mais grave da história do Chelsea teve início na esteira daquele que seria, até meados dos anos 1990, seu momento mais vencedor. Dentro de pouco mais de meia década, os londrinos conquistaram a Copa da Liga diante do Leicester em 1965, a FA Cup num dramático replay diante do Leeds em 1970 e a Recopa europeia superando o Real Madrid (também em jogo extra) em 1971, além de ocuparem com frequência posições altas na liga – embora sem repetir seu único título de 1955.

Buscando capitalizar sobre esse momento favorável, em que contavam com um time respeitável reunindo craques de seleção, além da aura de sofisticação que pairava sobre o clube, situado numa região valorizada e glamourosa da zona oeste de uma metrópole global como Londres, os dirigentes decidiram empreender uma ambiciosa reforma no estádio de Stamford Bridge, substituindo as arquibancadas do início do século por obras arquitetônicas mais modernas, state-of-the-art, como se dizia.
Os cartolas, porém, viram os custos escalarem tão rápido quanto fabulosamente, em virtude da escassez de material de construção, de greves dos operários e, sobretudo, da grande recessão econômica mundial que estourou com a crise do petróleo, em 1973. A reforma só começou a ver a luz do dia com a inauguração do Setor Leste, no primeiro jogo da temporada 1974-75, contra o Carlisle. A derrota por 2 a 0 para o estreante na elite foi um prenúncio: os Blues seriam rebaixados ao fim daquela campanha.
Pior que a queda, porém, foi a espiral de endividamento causada pelas obras. Por volta de 1977, elas chegavam a absurdos £4 milhões. Também em 1977 o Chelsea conseguiria retornar à elite com um time renovado, repleto de garotos da base, no que se vislumbrava como o despertar de uma nova era – ao menos dentro de campo. Ilusão: o clube duraria apenas duas temporadas na primeira divisão, sendo novamente rebaixado desta vez como lanterna em 1978-79 e tendo de vender seus jovens valores.
Ray Wilkins, meia-armador combativo e talentoso que chegou a ostentar a braçadeira de capitão com apenas 18 anos e havia defendido as seleções inglesas de base, seria vendido ao Manchester United logo após o descenso por £825 mil, maior valor da história do clube até então. O zagueiro Steve Wicks foi para o Derby e o atacante Kenny Swain seguiu ao Aston Villa. As vendas ajudavam a amortizar as dívidas, reduzidas para £1,5 milhão no início de 1982. Mas o time não conseguia sair da segunda divisão.
Como se não bastassem as crises técnica e financeira, o Chelsea também se tornara um dos expoentes mais temidos da chamada “doença inglesa”: o hooliganismo. Em 19 de abril de 1975, a derrota por 2 a 0 para o Tottenham, que praticamente selou a queda dos Blues, terminou com grupos de torcedores de ambos os clubes se digladiando em pleno gramado de White Hart Lane. Pior ainda aconteceria no início da temporada seguinte, com a equipe já na segunda divisão, em uma visita ao Luton.
Com o Chelsea perdendo por 3 a 0, hooligans do clube invadiram o gramado de Kenilworth Road para forçar a suspensão do jogo, chegando a agredir o goleiro adversário. Sem sucesso na missão, deixaram um apavorante rastro de destruição pela cidade, além de depredarem o trem em que retornaram a Londres. Mais preocupante ainda: o clube via surgir entre seus grupos de hooligans (como os Shed Boys) ramificações com inclinações racistas e neonazistas, ligadas a organizações como o National Front.

A temporada 1981-82 começou com o Chelsea mais uma vez buscando o acesso e até rondando a zona de promoção (na época, os três primeiros colocados subiam direto). Apesar de resultados bastante ruins, como a goleada de 6 a 0 sofrida diante do Rotherham e a eliminação na Copa da Liga para o Wigan, da quarta divisão, a equipe sem astros dirigida por John Neal pôde se manter próxima dos ponteiros até o fim de janeiro, impulsionada por uma sequência invicta de oito jogos pelo campeonato.
Durante essa sequência, aliás, os hooligans voltaram a criar problemas – inclusive para o clube. O tumulto provocado por eles no empate em 1 a 1 com o Derby County no Baseball Ground, em 28 de novembro, levou a Football Association a proibir a presença de torcedores do Chelsea em jogos fora de casa a partir de 1º de janeiro e até o fim da temporada. Os dirigentes dos Blues, no entanto, conseguiram apelar à Justiça inglesa e anular a punição. Só que, de fevereiro em diante, o time desandou.
Apesar da sensacional vitória sobre o Liverpool por 2 a 0 pela FA Cup, o Chelsea amargou declínio acentuado em sua campanha na liga no período: a série invicta de oito partidas deu lugar a uma sequência de nove jogos com sete derrotas e apenas duas vitórias. E mesmo na copa, o sonho de voltar a chegar longe parou logo na etapa seguinte, ao perder para o Tottenham por 3 a 2 em Stamford Bridge. Do quinto lugar na tabela ao fim de janeiro, os Blues despencaram ao 13º posto dois meses depois.
A MUDANÇA DE MÃOS
No fim de março de 1982, o chefe-executivo do Chelsea foi procurado em seu escritório por banqueiros que mantinham a conta corrente do clube. Eles traziam uma pergunta crucial para o futuro da agremiação: “Nós recebemos dois cheques para serem descontados hoje: um para os salários dos jogadores e o outro para a taxa administrativa da Football Association referente a um jogo da FA Cup. Qual deles devemos devolver?”. Para não ser forçado a fechar, o clube atrasou o pagamento do elenco.
Os donos do Chelsea eram então a mesma família Mears que fundara a agremiação em 1905 com o objetivo de utilizar o campo de Stamford Bridge – então um estádio sem um clube. Um de seus descendentes, Brian Mears, havia ocupado a presidência dos Blues entre 1969 e 1981, quando foi derrubado por um golpe engendrado pelo dirigente Charles Cadogan, o denominado Visconde Chelsea, que era quem agora ocupava o posto. Mas logo seria desalojado quando o clube ganhou um novo dono.
Aos 50 anos de idade, Ken Bates era um milionário inglês que fizera sua fortuna atuando nos mais variados ramos, da logística à concretagem, da extração mineral à pecuária leiteira. Mais tarde, empreenderia também fora do país, nas Ilhas Virgens Britânicas e na Rodésia – onde chegou a posar para fotografias com Ian Smith, primeiro-ministro que promovia no país regime semelhante ao apartheid sul-africano. E fundou em Dublin o Irish Trust Bank, instituição que teria falência decretada em 1976.
O futebol também estava entre suas atividades. Nos anos 1960, havia sido presidente do Oldham. E em 1980, ele comprara o Wigan, então na quarta divisão e admitido há pouco tempo na Football League, fazendo também parte da diretoria como vice-presidente. Ao incrementar as finanças do clube com uma série de garantias bancárias, proporcionou ao técnico Larry Lloyd (ex-zagueiro do Nottingham Forest) a montagem de um elenco forte, que conquistaria o inédito acesso à terceira divisão em 1981-82.
A BATALHA PELO ESTÁDIO
Eram as credenciais do novo dono do Chelsea, que no dia 2 de abril de 1982 acertaria a compra do clube pelo valor simbólico de £1 (uma libra) e passaria também a ocupar o cargo de presidente. Porém, entre as letras miúdas do contrato, havia um detalhe: Bates havia comprado o Chelsea, mas não Stamford Bridge. No processo de recuperação financeira efetuado anos antes, os antigos donos haviam dissociado o clube do terreno, que ficou vinculado à nova empresa SB Properties, da família Mears.
Ou seja: desde a virada daquela década, os Blues vinham arrendando o próprio estádio. Cenário que se agravaria dois anos após a chegada de Ken Bates, quando David e Brian Mears (netos de Gus Mears, fundador do clube lá em 1905) venderam a propriedade à incorporadora imobiliária Marler Estates. Diante desse quadro, o clube passou a viver sob a tensa expectativa de, a qualquer momento, poder ser desalojado de sua casa para esta ser demolida e dar lugar a um condomínio ou supermercado.
Assim, o Chelsea vivia na iminência de ter que passar a alugar o estádio de algum clube vizinho, como o Fulham ou o Queens Park Rangers – situação enfrentada na mesma época por outro time londrino, o Charlton, que pelo mesmo motivo precisou deixar seu estádio The Valley entre 1985 e 1988 para dividir o de Selhurst Park com o Crystal Palace. E isso acontecia bem no momento em que os Blues davam os primeiros sinais de uma recuperação técnica dentro de campo, em meados da década.
Após terminar em 12º lugar na segunda divisão em 1981-82, o Chelsea viveu a pior temporada de sua história na campanha seguinte, a primeira completa com Bates à frente do clube, ao flertar seriamente com o rebaixamento para a terceira divisão. Uma vitória dramática de 1 a 0 diante do Bolton fora de casa (encerrando um jejum de nove partidas sem triunfar) e um 0 a 0 em casa com o Middlesbrough nas duas últimas rodadas valeram a salvação, em 18º e só dois pontos acima da zona de descenso.

Mas uma providencial injeção de dinheiro impulsionaria uma inversão total na sorte do time para a campanha seguinte. Com elenco fortalecido por nomes promissores, o Chelsea conquistou não apenas o acesso com sobras (18 pontos à frente do primeiro time fora do G-3, o Manchester City) como também o título da segunda divisão, tendo de longe o melhor ataque e a segunda melhor defesa da categoria. O acesso foi selado com goleada de 5 a 0 no Leeds em Stamford Bridge, em 28 de abril de 1984.
Nas duas temporadas seguintes, 1984-85 e 1985-86, o time obteve o sexto lugar, ótima colocação para um clube recém-promovido. Na segunda, o Chelsea conquistaria ainda a edição inaugural da efêmera Full Members’ Cup, torneio disputado entre os clubes das duas primeiras divisões da liga, exceto aqueles que teriam se classificado para a Europa, mas não puderam participar devido à exclusão pela Uefa pós-Heysel – a estes, coube a ainda mais rara Super Cup, que só durou uma única edição.
Administrativamente, a era Ken Bates começou com contenção de despesas: postos de trabalho foram eliminados, jogadores foram dispensados e o preço dos ingressos foi majorado. E em meio à batalha contra a Marler Estates, o lado truculento do mandatário chegou às manchetes por conta de uma de suas medidas extremadas para combater o hooliganismo: instalar uma cerca elétrica por toda a extensão das grades que cercavam o gramado, tentando impedir as frequentes invasões de campo.
A cerca elétrica não chegou a ser ativada – as autoridades locais não permitiram. Mas a medida era uma amostra do perfil do mandatário dos Blues. Nos 21 anos em que esteve à frente do clube, não foram poucas as controvérsias que provocou, muitas delas após ataques verbais publicados em sua coluna nos programas (as revistas vendidas antes das partidas com informações sobre os jogos) do Chelsea. Outra reputação adquirida foi a de degolador de técnicos, com números acima da média no país.
John Neal – o nome por trás da renovação do elenco, do acesso em 1983/84 e da boa campanha no ano seguinte – foi o primeiro a sair, em junho de 1985, mas por problemas de saúde que o forçaram a se aposentar. John Hollins, antigo ídolo do clube, sucedeu Neal e fez o Chelsea repetir o sexto lugar em 1985/86 e levar a Full Members’ Cup. Dali em diante, porém, o time entraria em declínio: 14º colocado em 1986/87 e 18º em 1987/88, posição que o levou a jogar um playoff de descenso – e perder.
O PONTO DE INFLEXÃO E A NOVA RECUPERAÇÃO
Hollins já não estava mais no cargo quando Chelsea teve de disputar sua permanência na elite em partidas eliminatórias contra equipes da segunda divisão. Tinha sido demitido em março de 1988, com seu auxiliar Bobby Campbell assumindo o cargo a princípio interinamente até o fim da temporada. Na decisão do playoff, o Chelsea perdeu para o Middlesbrough (terceiro colocado da segundona) por 2 a 0 na ida em Ayresome Park. Na volta, a vitória por 1 a 0 em Stamford Bridge se revelaria insuficiente.
O jogo que decretaria o último rebaixamento da história do Chelsea até hoje seria, como tantos outros, marcado por atos de hooliganismo. Mas o clube se reergueria rapidamente, retornando à primeira divisão logo na campanha seguinte, ainda com Bobby Campbell no comando. Enquanto isso, os Blues seguiam sua batalha pela posse de Stamford Bridge, cujo contrato de arrendamento pelo clube, com prazo de sete anos, expiraria em 1989. Mas a ameaça da Marler Estates já vinha de anos anteriores.
Em março de 1986 a empresa conseguiu a aprovação do conselho local para transformar a área do estádio em um condomínio. Dois meses depois, uma mudança política na administração local fez com que a aprovação fosse revertida. Na mesma época, Ken Bates lançava a campanha “Save The Bridge” para tentar arrecadar a quantia de £15 milhões necessária para adquirir o terreno junto à incorporadora. Mas em 1989, com o fim do prazo de arrendamento, o clube foi notificado para deixar o terreno.
As táticas de Bates para protelar o despejo acabaram funcionando, e com uma boa dose de ironia. Ainda em 1989, a Marler foi adquirida por outra incorporadora, a Cabra Estates, que, durante o estouro da bolha imobiliária local, acabaria tendo falência decretada em 1992. A posse do terreno do estádio foi repassada ao Royal Bank of Scotland, que entrou em conversas com o Chelsea para que este conseguisse reunir definitivamente o clube e seu solo sagrado, o que viria a acontecer de maneira plena em 1997.
A guinada para recolocar o clube entre as forças do futebol inglês também aconteceria no meio da década de 1990. Após uma temporada e meia discretas sob o comando de Ian Porterfield, o clube contrataria, em junho de 1993, o meia Glenn Hoddle – antigo ídolo do Tottenham e com a experiência de duas Copas do Mundo pela Inglaterra e uma boa passagem pelo Monaco – para o posto de jogador-técnico, o qual ele exercera com sucesso no pequeno Swindon, levando o clube à elite naquele ano.
Logo na primeira temporada, Hoddle conduziria o Chelsea a sua primeira final da FA Cup em 24 anos, sendo derrotado pelo Manchester United. De todo modo, como o rival fizera a dobradinha, o vice-campeonato colocou os Blues na Recopa, marcando seu retorno ao cenário europeu após mais de duas décadas. O time chegaria à semifinal, caindo diante do futuro campeão Zaragoza. E em julho de 1995, o clube ousaria ao contratar o astro holandês Ruud Gullit, além do atacante galês Mark Hughes.
A VOLTA DAS TAÇAS COM UM TIME "INTERNACIONAL"
Hoddle deixaria o clube ao fim da temporada para comandar a seleção inglesa, e Gullit assumiria seu posto de jogador-técnico. Graças aos contatos internacionais do holandês e à abertura das fronteiras europeias pós-Lei Bosman, o clube começou a mudar o padrão do elenco, recrutando nomes de peso de fora das ilhas britânicas, como o lateral romeno Dan Petrescu, o zagueiro francês Franck Leboeuf e o trio italiano formado pelo meia Roberto Di Matteo e os atacantes Gianluca Vialli e Gianfranco Zola.

O novo time conquistaria a FA Cup em 1997, batendo o Middlesbrough na final, e voltaria a figurar entre os seis primeiros na liga após seis temporadas preso ao meio da tabela, entre o 11º e o 14º lugares. Gullit sairia após desentendimentos com a diretoria em fevereiro de 1998, mas o clube seguiria no caminho das conquistas, agora com Vialli passando a conciliar as funções de jogador e treinador. Ainda naquele ano, os Blues levantariam os títulos da Copa da Liga e da Recopa e da Supercopa europeias.
Naquela altura, o Chelsea já reunia uma verdadeira seleção mundial em seu elenco, incluindo ainda o goleiro holandês Ed de Goey (que destronara o russo Dmitri Kharine, no clube desde 1993), o lateral nigeriano Celestine Babayaro, o meia uruguaio Gustavo Poyet e o atacante norueguês Tore André Flo, entre outros, além do lateral Graeme Le Saux, nome certo nos Three Lions. Nesse sentido, o clube se transformava no mais “cosmopolita” do futebol inglês naquela época de afirmação da Premier League.
Assim, não foi surpresa quando, em 26 de dezembro de 1999, na vitória por 2 a 1 sobre o Southampton pela rodada de Boxing Day, o Chelsea se tornou o primeiro clube do país a escalar um time titular formado inteiramente por estrangeiros. Naquela partida, a equipe alinhava de saída De Goey, o lateral espanhol Albert Ferrer, Leboeuf, o brasileiro Emerson Thomé, Babayaro, Petrescu, o volante francês Didier Deschamps, Di Matteo, Poyet, o ponta italiano Gabriele Ambrosetti e Tore André Flo, autor dos dois gols.
Esse ressurgimento de competitividade se deveu em grande parte à guinada financeira ocorrida quando Matthew Harding, um jovem (41 anos) e bem-sucedido empresário do ramo dos seguros e dono de uma das 100 maiores fortunas do Reino Unido, foi convidado por Ken Bates a investir no clube em 1994. De saída, Harding (torcedor fanático do clube) injetou £26 milhões, sendo que parte dessa quantia foi utilizada na compra de Stamford Bridge e o restante para pagar dívidas e reforçar o elenco.
Com sua paixão genuína pelo clube e seu entusiasmo de torcedor (chegava a pedir autógrafos aos jogadores que, no fim das contas, eram seus funcionários), o carismático e acessível Harding logo se tornou querido do público: assistia às partidas nas arquibancadas, no meio da torcida, ao passo que Bates se enclausurava no camarote da diretoria com seus amigos milionários. Não demorou até que o ciúme do dono no clube aflorasse, e Bates começasse a atacar Harding através da imprensa.

Em meados de 1996, quando a tensão entre os dois atingia o auge, com Bates chegando a banir Harding dos quadros diretivos, comentava-se nos bastidores que o executivo vinha agitando um grupo de investidores para adquirir o clube do atual proprietário. Mas o empresário não chegaria a concretizar seu desejo: em 22 de outubro daquele ano, voltando de um jogo com o Bolton fora de casa pela Copa da Liga, o helicóptero em que ele viajava se acidentou, matando todos os ocupantes.
A perda foi muito sentida por toda a comunidade do Chelsea, que batizaria um dos setores de arquibancadas de Stamford Bridge – da qual o empresário financiara a reforma – como Matthew Harding Stand. Bates, por sua vez, causou horror e reprovação ao afirmar em entrevista que seu desafeto era “um homem mau”. Além disso, ao mesmo tempo em que o dinheiro injetado pelo executivo começava a escassear, o clube – leia-se Bates – fazia crescer seus gastos de maneira considerável.
Na virada do século, as cifras relativas às dívidas do clube batiam na casa dos £80 milhões, uma situação que só não era comparável a aquela em que Bates comprara o clube devido ao momento bem mais favorável do time, agora na primeira divisão e ocupando com frequência as primeiras colocações. Até que, em julho de 2003, ele aceitaria a oferta feita pelo russo Roman Abramovich, magnata do petróleo e gás, que adquiriu o clube por £140 milhões. Na transação, Bates teve lucro de £17 milhões.
O antigo proprietário ainda permaneceria no cargo de presidente até março de 2004, quase 22 anos completos após adquirir o clube. Em janeiro do ano seguinte, Bates repetiria o processo no Leeds, tornando-se acionista majoritário e presidente do clube de Yorkshire, então disputando a Championship. Ironicamente, o motivo de sua saída do Chelsea seria a reformulação da diretoria e o investimento pesado em jogadores promovidos pelos novos donos, sinalizando uma nova era em Stamford Bridge.
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