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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

Há 40 anos, a TV ao vivo chegava para ficar nos jogos da liga inglesa



Há 40 anos, os torcedores ingleses pararam diante de uma tela para assistir a algo até ali quase inédito no futebol do país: uma partida do campeonato com transmissão ao vivo pela televisão. Pode parecer incrível aos olhos de hoje, em que rodadas da Premier League (e até da Championship) são fatiadas e distribuídas por vários horários num fim de semana para atender aos interesses da TV – que retribui jorrando polpudas quantias nos cofres dos clubes. Mas essa realidade só começou a se delinear, ainda que timidamente, a partir de 1983, mais exatamente em 2 de outubro, quando a Independent Television (ITV) exibiu ao vivo e na íntegra, dentro de seu programa The Big Match, o jogo entre Tottenham e Nottingham Forest direto de White Hart Lane, prenunciando uma nova era.


O COMEÇO DA RELAÇÃO FUTEBOL-TV


A história das transmissões televisivas de futebol no Reino Unido é quase tão antiga quanto o próprio advento da televisão no país. Em setembro de 1937, pouco menos de um ano após a British Broadcasting Company (BBC) inaugurar a nova mídia, ela exibiu trechos de um jogo entre o time principal do Arsenal e seus reservas marcado para a ocasião. Em abril do ano seguinte seriam mostrados o clássico entre Inglaterra e Escócia pelo Campeonato Britânico e a final da FA Cup entre Preston e Huddersfield, ambos em Wembley.


Durante décadas, porém, as transmissões dentro do país ficaram restritas a jogos avulsos, como amistosos, jogos da seleção, finais da FA Cup e até uma partida da amadora Athenian League entre Barnet e Wealdstone em 1946, numa transmissão da BBC encerrada antes do fim do jogo devido a restrições de luz natural. Em 1955, quando entrou no ar a Independent Television (ITV), rede privada surgida da quebra do monopólio da estatal BBC, os jogos das recém-criadas copas europeias nos meios de semana foram incorporados à programação.


Na mesma época, a BBC deu o troco passando a mostrar as partidas da liga inglesa (de qualquer uma das quatro divisões da Football League), porém apenas em compactos curtos dentro de seus programas esportivos, tradição que seria mantida por décadas. Mas uma primeira tentativa de levar os jogos do campeonato ao vivo até a casa dos telespectadores seria feita pela nova e audaciosa concorrente ao início da temporada 1960-61, quando a ITV acertou com a Football League um contrato de exibição de 26 jogos por £150 mil.


Havia, no entanto, dois problemas: um era a grade de programação da emissora, que só permitia o início das transmissões com os jogos já rolando, perto do fim do primeiro tempo. O outro era, desde então, o dinheiro: o montante havia sido pago exclusivamente à liga, sem um centavo aos clubes. Diante disso, e pela maneira como a negociação havia sido conduzida, muitas das principais equipes da época – entre elas Arsenal, Manchester United, Tottenham e Everton – simplesmente proibiram o televisionamento de seus jogos.


Assim, dos 26 jogos previstos no acordo, a ITV transmitiu só um: o duelo entre Blackpool e Bolton em Bloomfield Road no dia 10 de setembro de 1960. Para piorar, o grande chamariz da audiência – a presença do célebre ponta Stanley Matthews nos Tangerines – não se consumou devido a uma lesão. A emissora então desistiu da ideia, e por 23 anos as transmissões ao vivo de futebol voltaram a se resumir ao cardápio de antes. Jogos da liga, só em compactos no Match Of The Day, da BBC, ou no The Big Match, da ITV.


A TENTATIVA QUE DEU CERTO


Quase um quarto de século depois, o cenário do futebol no país era bem diferente. No início dos anos 1980, o jogo perdera muito de seu prestígio e sofria com a queda acentuada da média de público, a precária situação financeira dos clubes e o avanço do hooliganismo. Assim, embora bem-vindas para aliviar o balanço dos clubes, duas novidades foram recebidas com surpresa no verão de 1983. Uma era o contrato de patrocínio do fabricante japonês de câmeras fotográficas Canon para a liga no valor de £3,3 milhões por três anos.


Pioneiro: Brian Moore narrou para a ITV a primeira partida ao vivo da liga inglesa em 1983..

O outro acordo era o de transmissão ao vivo de um número de jogos da liga assinado tanto com a BBC quanto com a ITV no valor de £5,2 milhões por dois anos. Novamente, porém, a televisão teve menos do que queria: as duas emissoras pretendiam mostrar 62 jogos, mas tiveram que se contentar com cinco cada uma por temporada – a BBC ainda ficaria com um a menos, depois que sua transmissão de Watford x West Ham em Vicarage Road em 28 de outubro de 1983 acabou cancelada devido a uma greve dos técnicos da emissora.


A rede estatal, que não permitia publicidade comercial nem nos intervalos de sua programação, também teve de ceder num outro ponto: relaxar suas restrições à então emergente propaganda nas camisas dos times, passando apenas a delimitar uma área menor a ser ocupada pelas marcas. De todo modo, uma nova era se anunciava para o jogo no país, ainda que as opiniões se dividissem na imprensa, especialmente numa época em que ainda era corrente a ideia de que a televisão só afastava o público dos estádios.


No Guardian, o respeitado cronista David Lacey resumia a encruzilhada do esporte: “Uma partida excelente na televisão persuadirá os torcedores de que esse é o melhor jeito de se assistir futebol. Um jogo fraco vai convencê-los de que não vale mesmo a pena pagar para vê-lo”. Além disso, o dia e a hora escolhidos para a primeira partida a ser exibida ao vivo (pela ITV), entre Tottenham e Nottingham Forest em White Hart Lane eram pouco usuais no futebol do país e provocavam discussões: domingo, 2 de outubro de 1983, às 14h35.


Na Inglaterra, desde a criação dos torneios, os jogos de fim de semana eram disputados tradicionalmente aos sábados. Havia até uma lei anterior, de 1780 (!), que proibia eventos com entrada paga aos domingos. Só em 1974, no contexto do racionamento de energia originado pela crise mundial do petróleo, a liga começou a admitir adiar alguns jogos do sábado para a tarde seguinte – não sem a oposição de dirigentes, jogadores e até grupos religiosos. Mas a ideia só foi retomada em definitivo justamente no começo de 1983.


O objetivo do Tottenham era claro ao estipular esse horário, segundo seu gerente comercial Mike Lewis: “Tirar o máximo de pessoas de casa o quanto antes”, já que “se elas não saírem antes do almoço, provavelmente ficarão em casa e assistirão o jogo pela televisão”, o que deixava de novo latente a preocupação com a eventual perda de público nos estádios para a TV: sob o lema “Não é ao vivo de verdade se você não estiver lá”, o clube investira na promoção do jogo e até providenciara transporte gratuito para algumas regiões.


A partida pela oitava rodada da liga, seria precedida por inúmeras outras atrações, entre elas um número musical com a dupla Chas & Dave e outro de comédia com o ator Warren Mitchell, todos eles notórios torcedores dos Spurs. Além disso, paraquedistas desceriam no gramado de White Hart Lane enquanto uma banda marcial se apresentava. Os primeiros mil menores de 16 anos que chegassem receberiam um programa do jogo, uma caneta do clube e uma foto autografada do elenco. Para os adultos, havia uma jogada mais ambiciosa.


O Tottenham aproveitou a ocasião para distribuir prospectos de mais de 30 páginas sobre uma de suas novidades para aquela temporada: o clube passaria a ter ações listadas na Bolsa de Londres, uma das formas encontradas para compensar as despesas geradas pela construção da nova arquibancada oeste de seu estádio. Mas nem todo mundo via com bons olhos essas ações de pré-jogo: o técnico dos Spurs, Keith Burkinshaw, comentou acidamente que a partida em si era “apenas uma nota de rodapé no fim do programa”.


Anúncio da transmissão publicado nos jornais ingleses em 1983.

Burkinshaw, que mais adiante anunciaria sua saída do clube ao fim da temporada após oito anos no comando do time, também fez duras críticas à transferência do jogo de sábado para domingo (“sinto que estamos penalizando nossos torcedores que compraram o carnê de ingressos para a temporada”) e à antecipação do horário do pontapé inicial para agradar à TV: “É um ultraje que tenhamos que ser obrigados a isso. Estamos jogando em casa e começaremos quando nos convier, não às câmeras de televisão”, vociferou.


O JOGO


Naquela altura, a sensação do campeonato era o West Ham, líder com 18 pontos mesmo após perder por 3 a 1 na visita ao Stoke no sábado. A seguir vinha o Southampton (17) e então Ipswich e Manchester United (16). O bicampeão Liverpool vinha logo abaixo com os mesmos 14 pontos de Queens Park Rangers, West Bromwich Albion e Birmingham. Em décimo, com 13, o Forest precisava da vitória que o alavancaria para junto dos ponteiros. Já o Tottenham ainda não havia vencido em casa e era o 17º, com oito pontos.


De todo modo, a promessa era a de um bom duelo, uma vez que tanto Keith Burkinshaw quanto o técnico do Forest, o lendário Brian Clough, apreciavam o futebol bonito, ofensivo e de toque de bola, que havia se traduzido em conquistas recentes para os dois clubes. Com tudo isso, o estádio de White Hart Lane recebeu o maior público daquele fim de semana na primeira divisão, com a presença de 30.596 torcedores, jogando por terra os temores de que a transmissão ao vivo pela TV prejudicaria as arrecadações de bilheteria.


O Tottenham trazia um time todo formado por jogadores das Ilhas Britânicas: além dos irlandeses Chris Hughton e Tony Galvin e dos escoceses Steve Archibald e Alan Brazil, havia muitos nomes de seleção inglesa, como o experiente goleiro Ray Clemence (ex-Liverpool), os versáteis Steve Perryman, Gary Mabbutt e Graham Roberts e o camisa 10 e maestro do meio-campo Glenn Hoddle – que na partida anterior, a vitória de 3 a 2 sobre o Watford em Vicarage Road no dia 24 de setembro, havia marcado um gol de placa.


O Forest, por sua vez, trazia um nome estrangeiro: o goleiro holandês Hans Van Breukelen, da seleção laranja. De remanescentes do time campeão inglês em 1978 e bi europeu nos dois anos seguintes, havia o lateral Viv Anderson, o meia Ian Bowyer e o centroavante Garry Birtles (de volta após passagem ruim pelo Manchester United). O ofensivo lateral Kenny Swain (ex-Aston Villa), o experiente zagueiro Colin Todd (ex-Derby), o atacante Ian Wallace (ex-Coventry) e o jovem armador Steve Hodge eram outros destaques.


E seriam os visitantes que sairiam na frente no placar logo aos cinco minutos: o cruzamento de Viv Anderson passou por Birtles, mas não por Colin Walsh, que escorou para as redes. Depois foi a vez de Van Breukelen brilhar com uma série de defesas, incluindo duas de Hoddle em chutes de fora da área. Mas aos 15 minutos da etapa final, quando Keith Burkinshaw substituiu o inefetivo Alan Brazil pelo ponta Garry Brooke, os Spurs começaram a abrir brechas na antes intransponível defesa do Forest. E chegariam à virada.


Aos 24 minutos, Brooke recebeu na direita, ganhou na velocidade de Colin Walsh e cruzou alto. O defensor Gary Stevens, contratado do Brighton para aquela temporada, saltou na pequena área e cabeceou para empatar. E a cinco minutos do fim, em outra jogada individual, Brooke foi parado com falta na ponta. Ele mesmo alçou a bola para a área e, na segunda trave, Mark Falco escorou para o centro, onde chegava seu parceiro de ataque Steve Archibald, que deu um último toque para o gol vazio: Tottenham 2 a 1.


No vídeo abaixo, os gols e melhores momentos da partida:

Em meio à empolgação com a atmosfera do jogo – bem diferente do que se passa na atual Premier League – houve até uma gafe do ex-atacante do Liverpool Ian St. John, que comentava o jogo para a ITV: “É melhor estar aqui do que sentado em casa berrando para a sua TV”. Ao que o narrador Brian Moore retrucou de imediato: “Não estou certo de que você deveria dizer isso”. Mas as análises dos jornais no dia seguinte, como a Frank McGhee no Daily Mirror ou a de David Lacey no Guardian, pareciam endossar as palavras de St. John.


DEPOIS DA REVOLUÇÃO


A ITV ainda transmitiria outros três jogos antes de enfim a BBC mostrar seu primeiro, novamente envolvendo o Tottenham, que visitaria o Manchester United em Old Trafford numa noite de sexta-feira, 16 de dezembro, e perderia por 4 a 2. Dali em diante, mais quatro jogos da liga seriam mostrados, entre eles um duelo da segunda divisão entre Manchester City e Chelsea em 4 de maio de 1984. Fora do pacote, mas de maneira igualmente inédita, a final da Copa da Liga em Wembley entre Liverpool e Everton também foi exibida ao vivo.


Curiosamente, os dois protagonistas da primeira partida da liga com transmissão integral ao vivo quase se reencontraram diante das câmeras de TV ao fim daquela temporada na decisão da Copa da Uefa. O Tottenham, que deixou pelo caminho o Feyenoord com Johan Cruyff e o Bayern de Munique com Karl-Heinz Rummenigge, acabou conquistando o título diante do Anderlecht, que na semifinal eliminara o Forest de maneira controversa, num caso de suborno ao árbitro espanhol Emilio Guruceta Muro que só viria à tona em 1997.


Quando aquele contrato inicial expirou, em meados de 1985, e as conversas para um novo acordo foram iniciadas, o panorama do futebol estava ainda pior que em 1983: com as tragédias de Heysel, Bradford e Birmingham, a sensação era a de um esporte cada vez mais sucateado. Entretanto, os clubes decidiram pedir alto, acima de um valor já bem maior que o do contrato anterior, e as negociações se arrastaram ao ponto de toda a primeira metade da temporada 1985-86 ter se desenrolado sem futebol nacional nenhum na TV.


Sem terem seus jogos mostrados nem mesmo nos tradicionais compactos do Match Of The Day ou do The Big Match, os clubes acabaram cedendo e assinando um contrato-tampão até o fim da temporada e por valor proporcionalmente ainda menor do que o oferecido de início. Mas já naquele momento, e pela segunda metade da década, os cartolas do “Big Five” da época – Arsenal, Tottenham, Everton, Liverpool e Manchester United – já se reuniam para debater a ideia de uma superliga que arrecadasse mais com a televisão.


Todo esse movimento de bastidores acabaria por desaguar na criação da Premier League, em 1992. Mas o primeiro passo conciliador na relação entre a Football League, os clubes e a televisão de modo a proporcionar a transmissão regular dos jogos ao vivo já havia sido dado nove anos antes. Foi o que abriu as portas para as mudanças profundas que viriam.

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