Os 60 anos de Neville Southall, lendário goleiro da última grande fase do Everton
- Emmanuel do Valle
- 17 de set. de 2018
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Durante 16 anos, ele foi uma garantia de solidez no gol do Everton. Impressionante combinação de coragem, confiança, segurança e ótimos reflexos, o galês Neville Southall – que completou 60 anos no último domingo – esteve entre os melhores goleiros não só do futebol inglês como de toda a Europa na década de 80. Lenda dos Toffees, “Big Nev” foi o jogador que mais vezes vestiu a camisa do clube na história, atuando entre 1981 e 1997. E foi instrumental no último grande período de glórias para o lado azul de Merseyside.
Nascido na cidade litorânea de Llandudno, no norte do País de Gales, Southall desde criança foi apaixonado por futebol e jogava como goleiro já em seu time de escola, mas não pensava que seguiria carreira profissional no esporte. Queria ser carteiro, mas acabou trabalhando de garçom, lixeiro (o que inspirou o título de seu livro de memórias, “The Binman Chronicles”) e ainda na construção civil. Manteve, porém, uma trajetória como arqueiro de algumas equipes semi-profissionais, até assinar com o Bury em 1980. Tinha quase 22 anos.
O novo profissional acabaria se tornando o grande destaque em uma temporada sem brilho dos Shakers. Eleito o jogador do ano e o jogador jovem do ano do clube, chamou a atenção de equipes maiores. No verão inglês de 1981, Howard Kendall, técnico do Everton, pagou £150 mil para trazê-lo ao Goodison Park, onde, de início, disputaria um espaço com os outros três goleiros do elenco – entre eles Seamus “Jim” McDonagh, titular da seleção da Irlanda e recém-contratado ao Bolton. Foram dois anos entrando e saindo do time antes de sua afirmação.
Sua primeira temporada como titular absoluto viria mesmo em 1983-84. O Everton passou por maus momentos naquela campanha, e Howard Kendall esteve perto de cair. Mas o time reagiu, terminou em sétimo na liga e empreendeu uma campanha vitoriosa na FA Cup, batendo o Watford na final. A conquista mudou radicalmente as ambições do clube. Na temporada seguinte, o time brigou por títulos em três frentes – e contou com atuações monumentais de seu goleiro para conquistar duas delas e chegar perto da taça na terceira.

Na liga, o time cumpriu campanha irretocável, batendo o recorde de pontos (somou 90, 13 a mais que Liverpool e Tottenham) e assegurando a taça ainda faltando cinco jogos por fazer. Na Recopa europeia, os Toffees superaram o poderoso Bayern de Munique na semifinal antes de faturarem o caneco batendo o Rapid Viena na final. O sonho da tríplice coroa só não se concretizou pela derrota para o Manchester United na prorrogação na decisão da FA Cup em Wembley.
A campanha que pôs fim a um jejum de 15 anos na liga foi repleta de momentos espetaculares de Southall, destacando-se as atuações fora de casa contra os principais perseguidores. Contra o Liverpool, ele salvou uma chance cara a cara do artilheiro Ian Rush que garantiu a primeira vitória dos Toffees em Anfield desde 1970. Na visita ao Manchester United (1 a 1), pegou um pênalti de Gordon Strachan. E nos 2 a 1 sobre o Tottenham em White Hart Lane, espalmou de maneira impressionante uma cabeçada à queima-roupa de Mark Falco no último minuto (Confira ao fim do texto um vídeo com sua grandes defesas).
A máxima de que um grande time começa por um grande goleiro valeu totalmente naquele Everton. Além de brilhante sob as traves, Southall também organizava a defesa e era um líder em campo. Embora vários jogadores do time fizessem uma temporada espetacular, a impressionante forma de seu camisa 1 sobressaía de tal modo que ele acabaria escolhido o jogador do ano no país pela Football Writers Association, a associação de cronistas esportivos ingleses.

Por essa época, Southall também já era o dono da posição na seleção galesa, que esteve muito perto de se classificar para a Copa de 1986, no México. Um gol de pênalti de Davie Cooper para a Escócia, empatando o jogo no Ninian Park, em Cardiff, encerrou o sonho dos Dragões. Meses depois, também defendendo o País de Gales, Southall sofreu uma fratura no tornozelo que o tirou da reta final da temporada 1985-86 com o Everton. E o time, que novamente brigava pelo título da liga e da FA Cup, sentiu enormemente sua ausência.
Big Nev só retornou aos gramados já com a temporada 1986-87 em andamento. Mas a partir do fim de outubro, quando retomou a camisa 1, voltou a ser decisivo para os Toffees, liderando a equipe para mais uma conquista da liga – para ele, mais saborosa que a anterior, por ter sido mais disputada e pelos problemas enfrentados pelo time como a perda de peças importantes, negociadas ou lesionadas. Suas atuações também valeram um lugar na seleção da temporada feita pela Associação de Jogadores Profissionais do país.
A escolha foi um feito carregado de simbologia, já que Southall destronava o antes intocável Peter Shilton, que havia encabeçado a seleção nas NOVE temporadas anteriores. E também porque Big Nev iniciava ali sua própria hegemonia: seria eleito novamente o melhor goleiro pelas três temporadas seguintes, até o fim da década, ainda que o Everton perdesse o rumo das conquistas, dando adeus a sua última fase de ouro.

Logo depois do título de 1987, o técnico Howard Kendall trocou o futebol inglês pelo espanhol, assinando com o Athletic Bilbao. Agora comandado por outro ex-jogador do clube, Colin Harvey, o time ficou numa boa quarta colocação, mas distante da briga pelo título. A defesa, pelo menos, funcionou muito bem: Southall sofreu apenas 24 gols nas 32 partidas em que atuou, o que valeu ao goleiro uma nova indicação à seleção do ano.
O Everton esteve perto de levantar uma taça na temporada seguinte, a da FA Cup, mas nem mesmo a boa atuação de Neville Southall pôde evitar a vitória do Liverpool na prorrogação por 3 a 2 em partida muito movimentada. A derrota não impediu, no entanto, que o goleiro fosse mais uma vez eleito para a seleção da temporada, repetindo o feito no ano seguinte, num momento em que o clube já começava a experimentar um declínio competitivo.
O fundo do poço quase veio em 1994, quando o clube só escapou do rebaixamento e da perda de seu status de equipe da elite depois de 40 anos na última rodada, com uma virada espetacular diante do Wimbledon (3 a 2). Um ano depois, o êxtase viria com mais um título da FA Cup, numa campanha irretocável: o Everton (e Southall) só sofreu um gol, de pênalti, ao longo de toda a caminhada. Na final, a equipe derrubou o favorito Manchester United, vencendo por 1 a 0.

Além de suportar a pressão dos Red Devils durante toda a partida, os Toffees contaram com outra atuação magistral de seu goleiro: Southall fez milagre ao segurar uma cabeçada de Gary Pallister e depois ao parar dois chutes seguidos de Paul Scholes. Naquele mesmo verão de 1995, Southall foi homenageado em um amistoso contra o Celtic e também condecorado com a Ordem do Império Britânico, recebendo sua insígnia das mãos da Rainha Elizabeth.
Em dezembro de 1997, Southall encerraria sua história como goleiro em Goodison Park, seguindo para o Southend por empréstimo. Dali em diante, passaria por Stoke, Doncaster e Torquay, entre outros clubes, encerrando a carreira em meados de 2001, aos 42 anos. Pouco antes de deixar o Everton, também faria seu último jogo pela seleção galesa, em agosto, contra a Turquia. Em 15 anos no time nacional, acumularia 92 partidas – recorde ainda hoje – com momentos de brilho, como nas vitórias de 1 a 0 sobre a Alemanha campeã do mundo e o Brasil em 1991.

Sua personalidade também rendeu várias histórias que perfazem um capítulo à parte. Totalmente avesso à badalação e ao glamour que envolvem o mundo do futebol, abstêmio desde o início da carreira e bastante reservado em sua vida pessoal, Southall sempre foi visto como ermitão, excêntrico ou um tipo “complicado”, de atitudes raras e insólitas no meio esportivo. Como a recusa inflexível a um brinde com bebida alcoólica oferecido pelo técnico Howard Kendall quando da assinatura de seu primeiro contrato com o Everton.
Outro caso sempre lembrado é o que o goleiro protagonizou na rodada de abertura da temporada 1990-91, quando o Everton perdeu em casa para o Leeds. Insatisfeito com sua própria atuação, Southall resolveu não descer para os vestiários. Em vez disso, sentou ao pé da trave para refletir – o que chegou a ser interpretado como um protesto, um pedido de saída do clube ou um gesto de pura excentricidade, tudo negado pelo camisa 1.

Seu desprendimento e desinteresse pelas confraternizações também foi lembrado na ocasião em que faltou a um jantar oferecido pelo clube logo após uma conquista da FA Cup, preferindo ir embora de Wembley dirigindo seu próprio carro até sua casa. Ao deixar o clube, resolveu aceitar o empréstimo ao Southend sem mesmo saber sequer onde ficava aquela cidade.
Hoje, Southall trabalha como educador numa escola galesa e voltou a ganhar espaço na mídia graças a sua conta do Twitter, na qual se posiciona sobre pautas sociais e combate os mais variados tipos de preconceito, incluindo diversos temas tabus no mundo do futebol, conferindo caráter ainda mais sui generis a sua personalidade dentro do jogo.
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