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Foto do escritorEmmanuel do Valle

Seleção inglesa nos anos 70, parte II: O hóspede indesejável


Don Revie comanda treino da Inglaterra vestindo o agasalho da seleção fabricado pela Admiral, fornecedora com a qual ele negociou o contrato para o English Team: o envolvimento em questões financeiras marcou sua era no cargo.

Após abordarmos no texto anterior a crise vivida pela seleção inglesa na primeira metade dos anos 1970, que levou ao fim o reinado de Alf Ramsey, o técnico campeão do mundo, no English Team, tratamos agora do segundo período da “década perdida” para a equipe nacional, marcado pelo comando do controvertido Don Revie, ex-técnico do Leeds, e pelas quedas nas fases classificatórias para a Eurocopa de 1976 e a Copa do Mundo de 1978.


Joe Mercer preferiu não continuar como técnico oficial da seleção inglesa após o fim de seu período como interino, em junho de 1974. Prestes a completar 60 anos, o sereno ex-comandante do Manchester City julgava-se velho para o cargo. Gordon Milne, que dividia o comando do Coventry (onde Mercer vinha ocupando um cargo de gerente) com o da seleção sub-18, chegou a ser cogitado, mas em 4 de julho vinha a confirmação do acerto com Don Revie, 46 anos, que acabara de levar o Leeds ao seu segundo título inglês após campanha quase irretocável.


QUEM ERA O NOVO ESCOLHIDO


Revie era então o técnico mais vitorioso em atividade no país, ainda que seus métodos e o estilo viril de jogo de sua equipe fossem alvos frequentes de críticas ácidas. Ele assumira o comando dos Whites em março de 1961 e subiria com eles para a primeira divisão em 1964. Na temporada seguinte, brigou pela dobradinha, feito admirável para um clube recém-promovido, mas acabou perdendo a liga no goal average para o Manchester United e a FA Cup para o Liverpool. O vice na liga foi repetido na campanha seguinte, junto com o da Copa das Feiras, diante do Dinamo Zagreb, um ano depois. A partir de 1968, no entanto, as taças começariam a chegar.


Primeiro vieram a Copa da Liga (primeiro título da história do clube) e a Copa das Feiras (batendo o bom time do Ferencvaros). Em 1969, enfim, chegaria a conquista da liga inglesa, seguida por outra Copa das Feiras vencida sobre a Juventus em 1971 e a primeira (e até hoje única) FA Cup de sua história no ano seguinte. Na temporada 1973-74, o time sustentou uma invencibilidade de 29 jogos na liga a partir da estreia e levou a taça com antecedência. “Revie era a escolha óbvia”, escreveu na época o renomado jornalista Brian Glanville no Sunday Times. O contrato de cinco anos foi assinado com um detalhe que chamou a atenção: o salário do novo técnico seria de 25 mil libras anuais, o triplo do que ganhava Alf Ramsey.


Don Revie cumprimenta Vaclav Jezek, técnico de seu primeiro adversário, a Tchecoslováquia. Ao fundo, seus respectivos auxiliares, Les Cocker e Jozef Venglos.

Logo ao assumir o cargo, Revie parecia fazer força para agradar a todos o tempo todo. Chegara a convocar nada menos que 81 jogadores considerados “selecionáveis” para um evento de confraternização num hotel em Manchester. Em seguida, anunciou aos atletas que ele havia conseguido junto à Football Association um aumento no valor da premiação paga pela federação aos jogadores que atuassem pela Inglaterra – o que para muitos soou mal, revelando uma certa relação obcecada do treinador com o dinheiro, como se este fosse o principal fator de motivação ao defender a equipe nacional.


UMA ESTREIA CONVINCENTE


A estreia de Revie, porém, pareceu dissipar qualquer animosidade. Dias antes da partida contra a Tchecoslováquia em Wembley, o treinador veio a público pedir que os torcedores entoassem “Land Of Hope And Glory”, hino não-oficial da Inglaterra (“God Save The Queen”, é bom lembrar, representa o Reino Unido). Folhetos com a letra foram distribuídos pelo estádio, numa tentativa de criar aquela “corrente para frente” que conhecemos bem no Brasil. Os quase 84 mil presentes corresponderam, e o time, com uma atuação categórica, esmagou os tchecos por 3 a 0 – embora demorasse até os 27 minutos da etapa final para abrir o placar.


A equipe escalada para aquele primeiro jogo ainda aproveitava bastante a rápida renovação promovida por Joe Mercer. Apenas três modificações em relação ao onze que empatara com a Iugoslávia em Belgrado quatro meses antes. Dois dos que entraram eram do Leeds: o lateral Paul Madeley ganhou a posição de Alec Lindsay, do Liverpool, enquanto o vigoroso Norman Hunter entrou na zaga no lugar de Colin Todd, do Derby. No meio, o clássico Trevor Brooking, do West Ham, cedeu espaço ao dinâmico Gerry Francis, do Queens Park Rangers, que debutaria naquela partida – ainda que Brooking reaparecesse saindo do banco contra os tchecos.


Em meio à euforia e à trégua de imprensa e torcida para com o treinador, a reação íntima de Don Revie foi surpreendente, e só tornada pública décadas depois por seu filho em uma entrevista. Após o jogo, Duncan Revie foi visitar o pai no hotel e nada entendeu quando não o encontrou com o mais feliz dos semblantes. “Não temos os jogadores. Não há ninguém como (Billy) Bremner ou (Johnny) Giles”, avaliou o treinador, citando dois de seus jogadores-chave no time e no elenco do Leeds – o primeiro, escocês, e o segundo, irlandês.


OS PROBLEMAS NA FORMAÇÃO DA EQUIPE


Bremner era um volante aguerrido e Giles, um armador talentoso. Não eram exatamente dois perfis escassos entre os jogadores ingleses. A questão é que ambos eram peças fundamentais no clube em grande parte porque “chegavam junto” quando necessário. E essa era a característica que fazia do Leeds uma equipe tão competitiva – e odiada. Por outro lado, e ao contrário de Alf Ramsey, Don Revie não descartou de imediato os chamados “mavericks”, jogadores tão habilidosos quanto rebeldes. Nomes como Frank Worthington, Dave Thomas e Alan Hudson foram lembrados logo nas primeiras convocações. Outros como Tony Currie, Stan Bowles e Charlie George ganhariam chances mais adiante.


Contudo, o fato de terem recebido pouco mais do que um par ou no máximo um punhado de jogos, no entanto, soava como se o treinador tivesse lhes usado para cortejar o apoio popular. Estranhamente, esse tipo de descarte súbito e sem maiores explicações aconteceria também com seus capitães. Emlyn Hughes usou a braçadeira nos dois primeiros jogos e, em seguida, foi praticamente ignorado nas convocações por dois anos. Alan Ball, o próximo detentor, carregou-a no braço por seis jogos – e depois disso nunca mais foi sequer convocado. Recebeu apenas uma carta pelo correio na qual era informado de seu desligamento.


Diante disso, não causa surpresa notar que uma das inabilidades de Revie no período foi definir um time e dar padrão a ele. Do jogo com os tchecos para o seguinte, três semanas depois, contra Portugal outra vez em Wembley pelas Eliminatórias da Eurocopa, a equipe entrou bastante modificada e parou num empate sem gols que se tornaria um tropeço decisivo na campanha. O primeiro jogo de 1975, no entanto, foi redentor: ao bater a Alemanha Ocidental campeã europeia e mundial por 2 a 0 em Wembley, os ingleses pareciam espantar velhos fantasmas. Dentre os três estreantes, numa escalação outra vez bastante mexida, o meia Alan Hudson foi o dono do jogo e o autor da assistência para o primeiro gol – e só faria mais uma partida pela seleção.


NA EUROCOPA, MAIS UM FIASCO


O ano seguiu com um desempenho um tanto irregular, com a equipe alternando atuações letais (como a goleada de 5 a 1 sobre a Escócia em Wembley, pelo Campeonato Britânico) com jogos francamente medíocres (o empate sem gols diante da Irlanda do Norte em Belfast pelo mesmo torneio). Em todo caso, a equipe seguia invicta e liderava seu grupo nas Eliminatórias da Eurocopa até o dia 30 de outubro, quando da decisiva partida de volta contra os tchecos em Bratislava.


Gerry Francis é travado por Ivo Viktor em Praga: primeira debacle com Revie.

Os ingleses saíram na frente depois de Keegan fazer bonita jogada pela ponta esquerda e achar Mick Channon na área para tirar do goleiro Viktor com um toque de cobertura. Mas um gol em cobrança de escanteio no último lance do primeiro tempo e outro de cabeça logo aos dois da etapa final arrasaram o moral da equipe de Don Revie, que agora já se tornara inescapavelmente contestado. Mesmo com a derrota por 2 a 1, a Inglaterra permanecia na frente do grupo por um ponto, mas com um jogo a mais que os tchecos. Ambos jogariam fora de casa contra Portugal, mas a seleção do bloco socialista também visitaria o lanterna Chipre.


A Tchecoslováquia ainda ajudou, parando num empate em 1 a 1 com os lusos no Porto, mas os ingleses repetiram o resultado em Lisboa uma semana depois e passaram a depender de um tropeço dos tchecos em Limassol. Mas a equipe de Vaclav Jezek liquidou o jogo com pouco mais de meia hora de jogo e venceu por 3 a 0, avançando às quartas. O fato de a Tchecoslováquia ter partido dali para o título europeu, derrotando pelo caminho Alemanha Ocidental e Holanda (respectivamente, os atuais campeão e vice do mundo), além da União Soviética do Bola de Ouro Oleg Blokhin, pouco ajudava a amenizar o ar derrotista que pairava sobre a Inglaterra.


UM BOM PAPEL NO TORNEIO BICENTENÁRIO


Até porque havia sido justamente a falta de bons resultados recentes que jogara a Inglaterra para o segundo pote do sorteio para as Eliminatórias da Copa de 1978. E, por azar, caíram no grupo encabeçado pela Itália, com Finlândia e Luxemburgo fazendo figuração. Anda que a Azzurra não vivesse seus melhores momentos – caíra na primeira fase no Mundial anterior e também não se classificara para a fase final da Euro, inclusive empatando sem gols com os finlandeses em Roma – estava meio evidente que o passaporte carimbado para a Argentina seria o daquela seleção que levasse a melhor nos confrontos diretos, e possivelmente pelo saldo de gols.


Antes disso, porém, em maio de 1976, a Inglaterra teve a chance de enfrentar os italianos no Torneio Bicentenário da Independência dos Estados Unidos, do qual também participaram o Brasil e de um combinado de jogadores da North American Soccer League (NASL) – incluindo vários britânicos, entre eles Bobby Moore. E os resultados foram até animadores. Na estreia, em Los Angeles, o time fez partida equilibrada contra o Brasil renovado de Osvaldo Brandão e perdeu por 1 a 0, gol de Roberto Dinamite no último minuto.


Em seguida viria o aguardado confronto, no Yankee Stadium de Nova York. Antes dos 20 minutos os italianos já venciam por 2 a 0, gols de Francesco Graziani, o primeiro deles após um erro do zagueiro Mike Doyle, enganado pelo quique da bola no péssimo gramado. Na etapa final, porém, os ingleses voltaram arrasadores. Diminuíram com apenas 30 segundos, depois que Dino Zoff fez milagre em chute de Joe Royle, mas não conseguiu evitar o chute no rebote de Mick Channon. E empataram aos dois minutos numa cabeçada do zagueiro Phil Thompson em escanteio.



A virada também não tardaria: aos oito minutos, Mick Channon completou um lançamento para a área e decretou a vitória por 3 a 2, um resultado animador para a perspectiva do reencontro entre as duas seleções em Roma no fim do ano. A participação foi encerrada com uma vitória tranquila por 3 a 1 sobre o combinado da NASL (que contou com Pelé e o italiano Giorgio Chinaglia no ataque) com três bonitos gols: Keegan marcou o primeiro de falta e o segundo após boa combinação de Stewart Pearson e Mick Channon. Gerry Francis, driblando o goleiro e tocando quase sem ângulo para as redes, anotou o terceiro.

MAIS LONGE DA COPA


Duas semanas depois, com uma boa vitória por 4 a 1 sobre a Finlândia em Helsinque, começaria a batalha das Eliminatórias para a Copa. Keegan (novamente com dois gols), Pearson e Channon anotariam os tentos ingleses. Porém, dali a quatro meses, o reencontro com os finlandeses seria decepcionante. Jogando em Wembley, a Inglaterra queria disparar uma goleada para abrir vantagem no saldo. O gol de Dennis Tueart aos quatro minutos foi animador, mas em seguida o time começou a desperdiçar chances e, logo na volta do intervalo, sofreu um inesperado empate. Quatro minutos depois, Joe Royle evitaria o vexame ao anotar o segundo gol, mas a vitória magra trouxe preocupação pelo futuro da equipe naquele grupo.


Em 16 de outubro, a Itália estrearia goleando Luxemburgo no ducado por 4 a 1, chegando com melhor estado de espírito para o primeiro grande duelo, dali a um mês. Tentando evitar a pressão inicial da Azzurra, Revie levou a campo uma Inglaterra novamente bastante modificada e claramente defensiva – chegou a reconvocar Emlyn Hughes depois de quase dois anos (e, pelo telefone, ouviu poucas e boas do jogador, furioso com o abrupto esquecimento). Os italianos não se intimidaram: atacaram e venceram facilmente, com um gol em cada tempo (Giancarlo Antognoni de falta e Roberto Bettega de cabeça), um confuso time inglês.


Brian Greenhoff persegue Fabio Capello, futuro técnico da seleção inglesa: a Copa mais distante.

A falta de padrão era outra vez o calcanhar de Aquiles do treinador à frente da seleção. Nos quatro jogos em que comandou a Inglaterra nas Eliminatórias, Revie utilizou nada menos que 26 jogadores de 12 clubes diferentes. Apenas o goleiro Ray Clemence, Kevin Keegan e Mick Channon atuaram como titulares em todas. No jogo crucial contra a Itália em Roma, Revie empregou uma defesa que nunca havia atuado junta. A Azzurra, por seu lado, tinha uma equipe baseada na Juventus e se mostrou bem mais coesa. “Eles não nos ganharam por 2 a 0, eles nos trucidaram por 2 a 0”, relembrou Emlyn Hughes anos mais tarde.

O BAILE DA LARANJA E OUTRAS DECEPÇÕES EM WEMBLEY


No amistoso contra a Holanda em Wembley, em fevereiro de 1977, outra escalação desastrada. Para tentar conter Johan Cruyff e companhia, Revie mais uma vez armou um time defensivo – e, pior, com pouca vocação para o gol. Kevin Keegan à parte, os outros dez titulares somavam entre si apenas dois tentos pela seleção (um deles, o lateral Kevin Beattie). A camisa 9 era vestida pelo estreante Trevor Francis, que costumava atuar mais como segundo atacante ou até mesmo meia em seu clube, o Birmingham City. Somente nos 15 minutos finais, com a entrada de Stewart Pearson, do Manchester United, é que a seleção contou com um centroavante nato.


Trevor Brooking disputa a bola com Ruud Krol na derrota para a Holanda em Wembley.

Mas era tarde. Em menos de 40 minutos do primeiro tempo, a Laranja já vencia por 2 a 0, dois gols de Jan Peters, encontrando sempre espaços na retaguarda inglesa. Cruyff jogava como queria. O treinador então tirou Brian Greenhoff, zagueiro deslocado como volante (a escalação de jogadores fora de suas posições era outro condenado hábito do técnico), para colocar outro zagueiro, Colin Todd. Os vazamentos foram cobertos, mas o time passou a ter mais dificuldade de sair de trás e ameaçar os holandeses. E o placar ficou naqueles 2 a 0.


Aquela não seria a única decepção da seleção de Revie em Wembley naquele ano. A campanha no Campeonato Britânico foi desastrosa, mesmo com a vitória na estreia sobre a Irlanda do Norte em Belfast (conquistada de virada com um gol de Dennis Tueart a quatro minutos do fim). Em seguida, justamente ao jogar duas vezes em casa, o time foi derrotado pelo País de Gales com um gol de pênalti de Leighton James e, quatro dias depois, também pela Escócia, que abriu 2 a 0 e controlou o jogo, com os ingleses diminuindo só no fim, em gol de pênalti de Mick Channon.


A vitória escocesa foi marcada pela invasão dos torcedores do Tartan Army ao gramado de Wembley, com vários deles arrancando pedaços da grama para guardar de lembrança ou mesmo subindo nos travessões até derrubá-los. A sensação de supremacia dos vizinhos do norte era reforçada pelo fato de a Escócia ser, pela segunda Copa do Mundo seguida, a única representante britânica no Mundial. Para os ingleses, era algo intolerável, o que só aumentava a ira contra Revie.

AO SAIR, REVIE MANCHA DE VEZ SUA REPUTAÇÃO


O último ato do treinador no comando da Inglaterra seria uma excursão à América do Sul em junho de 1977 para jogos contra Brasil no Maracanã, Argentina na Bombonera e Uruguai no Centenário. Os três terminaram em empates (1 a 1 contra os argentinos – num jogo em que o lateral Trevor Cherry levou um soco, perdeu dois dentes e ainda foi expulso – e 0 a 0 nos outros dois). Contra os brasileiros, no entanto, não era Revie quem estava na boca do túnel, e sim seu auxiliar Les Cocker. O treinador alegou ter ido a Helsinque assistir ao jogo da Itália contra a Finlândia. Porém, mais tarde, seu verdadeiro destino seria revelado.


O fato é que em 11 de julho de 1977, um dia depois de seu aniversário de 50 anos, Revie escreveu sua carta de demissão e colocou no correio. Ela só chegaria no dia seguinte à sede da FA, em Lancaster Gate. Antes de ela parar nas mãos dos dirigentes, a edição do dia 12 do Daily Mail já estava nas ruas. Na primeira página, em destaque, a bomba: Revie contava tudo sobre seu pedido de demissão, abandonando o time bem no meio das Eliminatórias. Mas um detalhe em particular causou repulsa geral: o treinador vendera a entrevista exclusiva ao tabloide por 20 mil libras.


“Quase todo mundo no país quer me ver fora, então estou dando a eles o que eles querem. Sei que as pessoas vão me acusar de fugir, e me enoja que eu não possa concluir o trabalho levando a Inglaterra à Copa do Mundo na Argentina no próximo ano, mas a situação se tornou impossível”, defendeu-se o treinador na publicação. Mas eram muitos os motivos para que todos quisessem ver Revie pelas costas. Os dirigentes consideraram uma traição terem sabido da demissão pela imprensa. Os outros jornais também repudiaram a venda da notícia, alimentando a fama de “mercenário” do treinador. E os torcedores se revoltaram por ele ter desprezado um cargo pelo qual os outros treinadores do país – Brian Clough à frente – dariam a vida.


Mas a ojeriza ao treinador ainda iria aumentar no dia seguinte, outra vez pelas páginas do Daily Mail: o jornal anunciou que Don Revie havia acertado um contrato fabuloso (340 mil libras por quatro anos) com a seleção dos Emirados Árabes Unidos. Imediatamente, a história da viagem a Helsinque para ver a Itália foi derrubada: o técnico havia voado para Dubai, para negociar o novo contrato. A FA suspendeu Revie do futebol inglês por dez anos por manchar a imagem do esporte (pena depois suspensa judicialmente). Mas todo o caso serviu para popularizar o mordaz apelido de Don “Readies” (uma gíria para dinheiro rápido) atribuído ao treinador.

UM CASO DE INCOMPATIBILIDADE


Além de seus próprios vícios e equívocos, é justo dizer que Don Revie também padeceu de problemas recorrentes no cargo de técnico da Inglaterra. Um deles era a dificuldade em trazer o mesmo tipo de entendimento coletivo do clube para a seleção. O sucesso dos treinadores nos clubes ingleses tinha muito a ver com o acompanhamento diário da rotina dos atletas e de uma série de códigos próprios desenvolvidos dentro de cada um deles.


A analogia pode fazer transparecer um certo provincianismo, mas cada clube – com seus dirigentes, sua comissão técnica, seus jogadores e seus torcedores – era um pequeno universo, com uma identidade de jogo e de gerenciamento de elenco muito arraigada. E transportar essa química para a seleção, que reunia grupos absolutamente heterogêneos de jogadores, vindos das mais diversas culturas clubísticas locais, era virtualmente inviável.


Revie, isolado: luta árdua para se fazer querido pelos jogadores.

No Leeds, as atividades propostas pelo treinador para descontrair e unir o grupo na preparação para os jogos – fossem partidas de boliche, minigolfe ou bingos – tinham a adesão unânime. Na seleção, eram desinteressantes para os demais jogadores. Revie tinha com seus atletas do clube uma relação de pai para filho. O problema é que os das outras equipes não queriam ser tratados como crianças. Da mesma forma, hábitos comuns em seus métodos de trabalho, como a elaboração de relatórios aprofundados sobre os futuros adversários, eram desprezados como aborrecidos e inócuos por quem não tivesse sido seu comandado no Leeds.


É preciso que se diga também que algumas das reivindicações de Revie durante seu período de trabalho eram bastante justas, ainda que exemplificassem mais um ponto divergente entre a experiência de dirigir um clube e uma seleção. Um exemplo era o pedido para que fossem canceladas ou adiadas as rodadas do campeonato que antecediam jogos da seleção, para que o elenco pudesse se reunir com antecedência e ter mais tempo de preparação para os jogos.


O futebol harmonioso demonstrado em algumas poucas ocasiões, como no Torneio Bicentenário, era fruto de um tempo maior de trabalho para burilá-lo, do qual o treinador raramente dispunha nas demais partidas. Muitas vezes os atletas não se apresentavam na forma física ideal devido ao calendário massacrante. Os dirigentes da Football Association, no entanto, não pareciam muito inclinados a ouvi-lo. Especialmente Sir Harold Thompson, com quem o treinador viveu às turras.


Sir Harold Thompson, desafeto de Revie: símbolo de uma FA austera, elitista e esnobe.

Antigo catedrático de Química da Universidade de Oxford, Thompson era o símbolo de uma FA austera, elitista e esnobe. Seu hábito de chamar Don Revie apenas pelo sobrenome indicava um certo desprezo, como a demarcar uma hierarquia não só profissional como também social, o que desagradava profundamente ao técnico. Num jantar, o dirigente virou-se para ele e comentou: “Quando eu te conhecer melhor, Revie, posso passar a te chamar de Don”. Ao que o treinador retrucou: “Quando eu te conhecer melhor, Thompson, posso passar a te chamar de Sir Harold”.


Além disso, eram frequentes suas intromissões na convocação e na escalação do time, assim como seus comentários – em geral depreciativos – ao futebol jogado pela seleção. A relação entre o treinador e a FA terminou em uma batalha judicial, com acusações de parte a parte. Mas Don Revie nunca mais voltaria a trabalhar no futebol inglês, embora chegasse perto de um acerto para comandar o Queens Park Rangers em 1984. Três anos depois teria diagnosticada uma doença degenerativa do neurônio motor, da qual morreria em maio de 1989, aos 61 anos.

RON GREENWOOD E A LUZ NO FIM DO TÚNEL


A corrida para suceder Don Revie no comando da seleção foi acirrada. Brian Clough era o favorito popular, mas Bobby Robson, técnico do Ipswich, também era muito bem visto pelos analistas e pela federação. Além dos dois, Dave Sexton (que trocara o Queens Park Rangers pelo Manchester United), Lawrie McMenemy (do Southampton) e o ex-zagueiro Jack Charlton, que acabara de deixar o cargo no Middlesbrough, também foram entrevistados. E quase uma dezena de outros treinadores e ex-jogadores também se candidataram.


Ron Greenwood: da "Academia" do West Ham à seleção.

O escolhido foi anunciado em 15 de agosto. Era o sóbrio Ron Greenwood, que treinara o West Ham por 13 anos, antes de passar a exercer um cargo de supervisão no clube em 1974. No clube de Upton Park, até então sem títulos, levantou a FA Cup em 1964, seguida pela Recopa europeia no ano seguinte, fomentando a carreira do lendário trio formado por Bobby Moore, Martin Peters e Geoff Hurst, que seria crucial na conquista da Copa do Mundo de 1966 pela Inglaterra. E em sua primeira temporada como supervisor, o clube venceria mais uma FA Cup.


Instado a operar um milagre, escalou seis jogadores do Liverpool mais Kevin Keegan (que havia sido jogador dos Reds até meses antes, quando se transferiu para o Hamburgo) em seu primeiro jogo, um amistoso com a Suíça em Wembley. O time fez boa atuação, mas não saiu do 0 a 0. Era um mau sinal. No dia 12 de outubro, viria a partida contra Luxemburgo fora de casa pelas Eliminatórias. A vitória por 2 a 0, com o segundo gol saindo só no último minuto, foi um tanto frustrante, já que se desejava uma goleada. Pior seria o deplorável comportamento de parte dos torcedores ingleses, que depredaram o Stade Municipal.


Três dias depois, a Itália arrasaria a Finlândia em Turim por 6 a 1, chegando a quatro vitórias em quatro jogos e aumentando seu saldo de gols para 13 (contra nove dos ingleses). Os dois últimos jogos do grupo colocariam a Inglaterra recebendo a Azzurra em Wembley e, por fim, os italianos enfrentando Luxemburgo em Roma. Considerando como improvável um tropeço da equipe de Enzo Bearzot em sua partida derradeira, restava ao time de Ron Greenwood tentar uma goleada em Londres e torcer para que os luxemburgueses endurecessem o jogo no Estádio Olímpico.


Em 16 de novembro de 1977, a Inglaterra se redimiu com uma atuação magnífica. Jogando um futebol corajoso, impetuoso e ofensivo, dominou inteiramente as ações com excelentes exibições de Kevin Keegan (que abriu o placar, e a quem Marco Tardelli tentou parar com uma grotesca cotovelada que passou praticamente impune) e de Trevor Brooking (que cruzou para o primeiro gol e marcou o segundo), vencendo por 2 a 0. Porém, não foi o suficiente: empatados no saldo, os italianos precisariam de vitória simples sobre Luxemburgo. Ganharam por 3 a 0 e tornaram o jogo de Wembley nada mais que uma despedida honrosa para o English Team.



Greenwood seguiria no comando e em seu primeiro ciclo completo enfim encerraria o jejum inglês de participações em grandes torneios, classificando sem sustos a equipe para a Eurocopa de 1980, confirmando o favoritismo num grupo com as duas Irlandas, Bulgária e Dinamarca. Após tantas turbulências, a década terminaria num certo tom de alívio.

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