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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

Há 40 anos, a primeira transferência milionária do futebol inglês


Jogador habilidoso, inteligente e bom finalizador, o meia-atacante Trevor Francis foi personagem de uma transferência que marcou época no futebol inglês há exatos 40 anos. Contratado em 9 de fevereiro de 1979 pelo ambicioso Nottingham Forest dirigido por Brian Clough junto ao Birmingham City, tornou-se o primeiro jogador britânico a ser negociado por uma quantia acima de um milhão de libras.

Os bastidores daquela negociação (que envolveram uma cifra que parecia ainda distante de ser alcançada naquele momento), o que ela representou para o futebol inglês naquele período e no que se seguiu a ele, a trajetória de Francis até ali e ainda como seria sua passagem pelo clube serão tratados neste texto.


O CONTEXTO DO NOTTINGHAM FOREST


Campeão inglês (e da Copa da Liga) na temporada 1977-78 com uma campanha surpreendente e contando com um elenco relativamente curto (foram 16 jogadores utilizados ao longo das 42 rodadas da liga), o Nottingham Forest teria em 1978-79 um desafio a mais pela frente. E um desafio enorme e bastante simbólico: a Copa dos Campeões da Europa.


Para o técnico Brian Clough, a conquista era uma meta pessoal tanto pelo fato de ele próprio ter chegado perto dela em 1973, quando dirigia o Derby County e caiu nas semifinais de maneira controversa diante da Juventus, quanto pelo fato de o Liverpool, seu principal adversário nacional naquele momento, ser então o atual bicampeão do torneio.


O elenco do Forest campeão inglês em 1977-78.

Apesar disso, o elenco começou a nova temporada quase inalterado. E se, até aquele início de fevereiro de 1979, já havia despachado o próprio Liverpool e o AEK Atenas na Copa dos Campeões, classificado-se para mais uma final da Copa da Liga (na qual teria pela frente o Southampton em Wembley) e também avançado em seus dois primeiros desafios pela FA Cup (contra o Aston Villa e o York City), na liga as coisas não andavam tão bem.


Embora com jogos a menos em relação a quase todos os clubes acima dele na tabela, o Forest, atual campeão, ocupava apenas a sexta posição naquele momento, seis pontos atrás do líder Liverpool e a cinco dos vice-líderes West Bromwich Albion e Everton. Assim, havia não apenas a intenção de reforçar o elenco, mas também o desejo de uma contratação de impacto, que indicasse a medida da ambição e do poderio do clube de East Midlands.


QUEM ERA TREVOR FRANCIS


O alvo escolhido para esta transferência que sacudiria o futebol inglês era um meia-atacante de 24 anos que vinha se destacando desde o início da década pelo Birmingham City. Seu nome era Trevor Francis. Nascido na cidade de Plymouth, região de Devon (sudoeste inglês), em 19 de abril de 1954, iniciara a carreira profissional pelos Blues (então na segunda divisão) com apenas 16 anos, na temporada 1970-71. Era tido como um prodígio.


Em seus primeiros 15 jogos pelo clube, balançou as redes 15 vezes. Numa partida contra o Bolton, em fevereiro de 1971, marcou os quatro gols na vitória por 4 a 0. Ao longo da década, Trevor Francis conseguia o feito de brilhar por um clube que passava a maior parte da temporada lutando contra o rebaixamento, ou pelo menos acomodado na metade de baixo da tabela. Em fevereiro de 1977, faria sua estreia pela seleção inglesa.


Dois anos depois, era nome estabelecido no English Team de Ron Greenwood que buscava a classificação para a Eurocopa de 1980. Já no clube, as coisas não iam tão bem. Quando entrou em campo pela última vez defendendo o Birmingham (em 3 de fevereiro de 1979, o sábado anterior à transferência, numa derrota para o Chelsea em Stamford Bridge por 2 a 1), a equipe ocupava a lanterna, com apenas oito pontos ganhos em 23 jogos.


Depois de 118 gols anotados em 279 jogos pelo Birmingham contando apenas partidas de liga, e de ter figurado na seleção do campeonato nas duas temporadas anteriores, era o momento de mudar de ares: Trevor Francis simplesmente não cabia mais na realidade um tanto modesta dos Blues. Mas quando Brian Clough acenou com a proposta, ela foi recebida com surpresa.


COMO SE CHEGOU AO MILHÃO DE LIBRAS


Fazendo justiça aos fatos, o valor histórico (para o futebol inglês) foi estipulado pelo próprio Birmingham City, percebendo que não teria como segurar seu astro por muito tempo, até mesmo em vista da nova legislação de transferências que entrara em vigor no Reino Unido em abril do ano anterior e que estabelecia a chamada “liberdade de contrato”.


Aprovada por pressões da Uefa e da Comunidade Europeia (atual União Europeia, para a qual o Reino Unido havia entrado em 1973), a medida dava pela primeira vez ao jogador o poder de recusar propostas de renovação com o clube em que atuava e, neste caso, mudar de camisa por um valor a ser estipulado pelos clubes ou por um tribunal. O resultado foi o início de uma escalada nos valores de transferências de jogadores entre os clubes britânicos.


David Mills, o recordista anterior, ao lado do técnico do West Brom, Ron Atkinson.

Nove meses depois, a soma de meio milhão de libras foi superada pela primeira vez numa transferência entre clubes britânicos (antes, em junho de 1977, o Liverpool havia recebido o valor ao vender Kevin Keegan para o Hamburgo alemão). Em 7 de janeiro de 1979, o West Bromwich Albion, dirigido pelo ambicioso Ron Atkinson, pagou £ 516 mil ao Middlesbrough pelo atacante David Mills, estabelecendo o novo recorde nacional.


O que ninguém imaginava era que a marca seria ultrapassada – e dobrada – dentro de tão pouco tempo. Ainda que, colocando em perspectiva, não se equiparasse aos valores já pagos, por exemplo, no futebol italiano, no qual o primeiro jogador negociado por mais de dois bilhões de liras (valor que se equivalia então ao milhão de libras) havia sido o atacante Giuseppe Savoldi, que trocou o Bologna pelo Napoli em meados de 1975 por £ 1,2 milhão.


E mesmo em 1979, a quantia paga por Brian Clough para tirar Trevor Francis do Birmingham ainda ficava aquém do £ 1,75 milhão desembolsado pela Juventus três anos antes para comprar o jovem atacante Paolo Rossi, do Vicenza, marca que ainda representava então o recorde mundial. Porém, dentro da realidade do Reino Unido, a transferência marcou época.


Trevor Francis é apresentado pelo Forest ao lado de um impaciente Brian Clough.

O Forest teve a concorrência do Coventry, então presidido pelo ex-jogador e apresentador Jimmy Hill, mas ganhou a parada quando Clough permitiu que Trevor Francis passasse as férias de verão cedido ao Detroit Express (de propriedade de Hill) na liga norte-americana. A assinatura do contrato se tornou um evento anedótico, protagonizado por Clough vestindo um agasalho vermelho e brandindo uma raquete de squash em frente às câmeras.


Curiosamente, o montante pago pelo Forest só ultrapassou o lendário milhão de libras quando entraram na conta as taxas e impostos referentes à transação, o que elevou o valor para £ 1,18 milhão. Já ao Birmingham City coube a quantia de £ 950 mil. Brian Clough, por sua vez, afirmou sempre que o valor real havia sido de £ 999.999, uma maneira de tirar dos ombros do novo contratado o peso da grande movimentação econômica feita para trazê-lo.


COMO O MERCADO SE COMPORTOU DEPOIS


Depois da porteira aberta, as transferências milionárias se proliferaram, assim como se acirrou a corrida pelo novo recorde, que foi batido mais duas vezes só naquele ano de 1979. No início de setembro, o Manchester City surpreendeu ao pagar £ 1,437 milhão aos Wolves pelo meia Steve Daley, de 26 anos e que sequer havia defendido a seleção, na transação que mais tarde seria considerada “o maior desperdício de dinheiro na história do futebol”.


Com o dinheiro recebido pela venda de Daley, os Wolves agiram rápido: apenas três dias depois, bateram à porta do Aston Villa e, por £1,49 milhão (novo recorde nacional), levaram o atacante escocês Andy Gray – que dali a alguns meses anotaria em Wembley o gol do título da Copa da Liga para o clube de West Midlands sobre o Nottingham Forest.


Steve Daley chega ao City: transferência inflada e novo recorde.

Nos 18 meses após a contratação de Francis, quase uma dezena de transferências igualaram ou superaram o milhão. Algumas simbólicas: o primeiro jogador sub-20 de £ 1 milhão (o atacante Clive Allen, que trocou o Queens Park Rangers pelo Arsenal), o primeiro defensor (Kenny Sansom, do Crystal Palace para o Arsenal, numa negociação que também envolveu Allen) e o primeiro jogador negro (o atacante Justin Fashanu, do Norwich para o Forest).


A gastança, porém, era incongruente com as receitas dos clubes. Num tempo sem patrocínios máster nas camisas e em que o dinheiro da televisão era ínfimo e compartilhado igualmente entre todos os 92 clubes da Football League, a principal fonte de arrecadação ainda eram as rendas de bilheteria. E elas vinham em queda naquela virada de década.


No início dos anos 80, o número total de torcedores nos estádios era cerca de metade do que havia sido no fim dos anos 40. Em grande parte, devido à recessão econômica e o aumento brutal das taxas de desemprego no país naquele começo de década (que afetavam principalmente a classe operária, maioria entre os torcedores), mas também diante do temor gerado no torcedor comum pelo avanço desenfreado do hooliganismo.


Como resultado desses fatores, quase todos os clubes da Football League adentraram a década operando no vermelho, mergulhados em dívidas, e muitos à beira da insolvência, ainda que tentassem compensar com um aumento no preço dos ingressos. Não foram poucos os casos de clubes tradicionais (como Wolves e Middlesbrough) salvos de fechar as portas por contribuições de grupos de torcedores, consórcios ou empresários locais.


COMO FOI A CARREIRA DE FRANCIS NO FOREST


Não foi apenas nas cifras que Clough tentou minimizar a chegada retumbante de Trevor Francis. No anúncio da contratação, ele afirmou que o jogador, o qual já somava 12 partidas pela seleção inglesa, tinha “um grande potencial”. Quando de sua estreia, entrando durante uma partida contra o Bristol City em 24 de fevereiro, recebeu apenas uma orientação do técnico: “Entregue a bola para [o ponta-esquerda] John Robertson. Ele é melhor jogador que você”.


Francis demorou mais de duas semanas para debutar com a camisa do Forest devido a um grande imbróglio envolvendo sua regularização. E também demorou a anotar seu primeiro gol, quase dois meses depois, ao balançar as redes do Bolton num empate em 1 a 1 no City Ground no dia 31 de março. Era seu sétimo jogo pela equipe, o sexto como titular.


Porém, voltou a marcar nos dois jogos seguintes (4 a 0 sobre o Aston Villa e 3 a 1 diante do Chelsea em Londres). Até o fim da liga, faria mais três preciosos gols: o do empate em 1 a 1 com o Manchester United, o da vitória por 1 a 0 sobre o Southampton e o do triunfo pelo mesmo placar diante do West Bromwich nos Hawthorns, em briga direta que levou o Forest a tomar do adversário o segundo posto na classificação final.


Trevor Francis encara a defesa do Malmö na final da Copa dos Campeões.

O gol mais importante de toda a sua passagem pelo clube viria 12 dias depois do fim do campeonato. Francis já havia sido obrigado a ficar de fora da final da Copa da Liga, na qual o Forest bateu o Southampton por 3 a 2, por ter atuado antes pelo Birmingham. Também não pôde ser inscrito na FA Cup, na qual o clube seria eliminado pelo Arsenal nas oitavas de final. E também não havia participado até ali da campanha na Copa dos Campeões.


Na época, a janela de inscrições da Uefa só era reaberta para a final dos torneios europeus. E o meia-atacante teve que aguardar até o jogo contra o Malmö no Estádio Olímpico de Munique, no dia 30 de maio, para fazer sua estreia nas copas continentais. Mas a espera valeu. Quando a etapa inicial já entrava nos descontos, Robertson recebeu passe de Bowyer, desceu, gingou na frente dos marcadores, foi à linha de fundo e cruzou na segunda trave.


Trevor Francis, dono da camisa 7 no lugar do lesionado Martin O’Neill, seguiu toda a jogada e surgiu para cabecear, sem defesa para o goleiro. Nas palavras imortais de Barry Davies, narrador do jogo pela BBC, “Trevor Francis, the million-pound man, puts his name onto the scoresheet and returns the great deal of the cheque” (algo como “Trevor Francis, o homem de um milhão de libras, põe seu nome no placar e paga a grande quantia do cheque”).


Era o gol do improvável título europeu de um clube que dois anos antes estava na segunda divisão de seu país. Dali em diante, porém, nem tudo foi um mar de rosas em sua passagem pelo City Ground. A discórdia começou justamente após retornar dos Estados Unidos, onde ele se lesionou na virilha defendendo o Detroit Express. De fora dos dois primeiros meses da temporada, acabou tendo seus salários suspensos durante o período de inatividade.


A temporada 1979-80 foi de altos e baixos. Pela liga, ele atuou em 31 dos 42 jogos e marcou 14 gols, incluindo um hat-trick na goleada de 4 a 0 sobre o Manchester City no fim de fevereiro, mas o Forest terminou apenas na quinta colocação, bem abaixo dos dois anos anteriores. Francis também esteve em campo na conquista da Supercopa Europeia em dois jogos contra o Barcelona e na derrota na final da Copa da Liga para o Wolverhampton.


Já no outro título levantado na temporada, o bi da Copa dos Campeões, Francis teve participação curta, mas decisiva. Após ter sido baixa por lesão nas duas primeiras fases, ele voltou ao time para o duelo das quartas de final contra o Dynamo Berlim, da Alemanha Oriental. Surpreendido na ida, ao perder por 1 a 0 em pleno City Ground, o Forest deu o troco na volta, vencendo por 3 a 1, com o meia-atacante anotando os dois primeiros gols.


Contra o Ajax, na semifinal da Copa dos Campeões de 1980.

Nas semifinais, diante do Ajax, ele abriu o placar e o caminho para a classificação na vitória por 2 a 0 em casa. Na volta, em Amsterdã, o time pôde suportar uma derrota pelo placar mínimo e sair com a vaga na decisão. Por ironia, o autor do gol do título europeu de 1979 em sua única partida naquela edição ficaria de fora da final seguinte, contra o Hamburgo, por uma séria lesão no tendão de Aquiles. Mesmo assim, os ingleses venceriam por 1 a 0.


A lesão também acabou tirando Trevor Francis da Eurocopa de 1980. Ele foi ausência sentida: a seleção de Ron Greenwood acabou eliminada na fase de grupos, depois de perder para os belgas, empatar com os anfitriões italianos e derrotar os espanhóis. Mas a maior medida da gravidade do problema físico foi percebida na temporada seguinte, quando o meia-atacante só entrou em atividade na metade de dezembro.


Naquela que seria sua última temporada completa no clube, ele recebeu a camisa 9, depois de rodar por várias posições do meio e do ataque. Foi inclusive um ponto que prejudicou seu rendimento ideal no Forest: nem Clough, nem seu auxiliar Peter Taylor conseguiam chegar a uma conclusão sobre a melhor posição para escalá-lo – se aberto pela direita, ou como segundo atacante, ou como homem de área, ou mesmo como armador.


Derrota para o Nacional em Tóquio: uma das decepções da temporada 1980-81.

Que a temporada 1980-81 foi frustrante para ele e para o Forest, era indiscutível: Francis atuou apenas 18 vezes pela liga e anotou cinco gols. Vivendo malfadada transição, o clube terminou em sétimo na liga, caiu antes das semifinais nas duas copas nacionais e ainda na primeira fase da Copa dos Campeões para o CSKA Sofia e perdeu a Supercopa Europeia para o Valencia e o Mundial Interclubes em Tóquio para o Nacional de Montevidéu.


Trevor Francis ainda iniciaria a temporada 1981-82 no clube, marcando os gols da vitória de 2 a 1 sobre o Southampton na rodada de abertura, em 29 de agosto. Mas o jogo seguinte – empate sem gols com o Manchester United em Old Trafford, dois dias depois – seria seu último vestindo a camisa do Forest. No começo de setembro, seria vendido ao Manchester City por £ 1,2 milhão, pouco mais do que havia custado dois anos e meio antes.


Em nova casa: Trevor Francis vai para o Manchester City.

O meia-atacante ficaria apenas aquela temporada em Maine Road. Sem dinheiro para mantê-lo, o Manchester City o negociou com a Sampdoria, força emergente da milionária e estelar Serie A italiana, após seu bom desempenho pela seleção inglesa na Copa do Mundo de 1982, quando foi titular em todos os cinco jogos do time e marcou dois gols, contra Tchecoslováquia e Kuwait. Francis ficaria cinco anos no Calcio (quatro nos Blucerchiati, com quem venceria a Copa da Itália, e um com a Atalanta).


Retornaria ao futebol britânico para defender o Glasgow Rangers, antes de voltar à Inglaterra e atuar no Queens Park Rangers. Chegaria a acumular as funções de jogador e técnico em Loftus Road e também no Sheffield Wednesday, onde penduraria as chuteiras em 1994, aos 39 anos. Teve uma carreira longa e marcante. Mas até hoje convive com o fato de ser reconhecido e lembrado muito mais pelo valor de sua transferência há 40 anos.

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