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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

Há 80 anos, o Preston levava sua última taça na primeira final da FA Cup vista ao vivo na TV


Quem se depara hoje com os números de telespectadores das últimas finais da FA Cup rondando o meio bilhão ao redor do mundo mal pode imaginar o contexto bem mais modesto e provinciano que recebeu a primeira decisão da taça a ser televisionada ao vivo, há exatos 80 anos. O confronto entre Preston e Huddersfield no estádio de Wembley naquela tarde de 30 de abril de 1938 teve pelo menos um grande personagem histórico do futebol inglês em campo, foi decidido de maneira quase infartante e gerou alguns casos bem curiosos na mídia. E se desenrolou diante das lentes de três câmeras de TV.


Fundada em 1922 como empresa de radiodifusão, a British Broadcasting Company (BBC) inaugurou uma nova mídia no Reino Unido ao iniciar as transmissões televisivas regulares no dia 2 de novembro de 1936. Pouco menos de um ano depois, em 16 de setembro de 1937, um amistoso entre o time principal do Arsenal e seus reservas em Highbury, realizado especialmente para a ocasião, entrou para a história como o primeiro jogo de futebol televisionado da história. Em abril do ano seguinte viria o segundo, o confronto internacional entre as seleções de Inglaterra e Escócia pelo Campeonato Britânico em Wembley.


O terceiro, dali a menos de um mês, também seria jogado no velho Empire Stadium: a final da FA Cup, a primeira a ser transmitida ao vivo pela novidade da televisão. O dado da transmissão ao vivo, porém, passa a ideia de uma exibição em um âmbito nacional, de uma novidade acompanhada pelo país inteiro, mas não foi o que aconteceu. Ainda no fim daquele ano, o número de aparelhos televisores no Reino Unido não chegava a 10 mil, e o raio de alcance das transmissões mal ultrapassava a Grande Londres.


De qualquer forma, foi uma final histórica, cujo desfecho dramático quase levou o Lancashire Post, um dos principais periódicos da região de Preston, a um equívoco jornalístico de enormes proporções (história curiosa que pode ser lida em detalhes aqui). E ainda rendeu outro caso bem curioso envolvendo justamente o narrador da transmissão televisiva da BBC naquela partida, Thomas Woodrooffe, sobre o qual contaremos mais adiante.


Huddersfield e Preston se reencontravam naquela final depois de terem decidido o torneio em 1922 em Stamford Bridge (Wembley seria inaugurado só no ano seguinte). Na ocasião anterior, o time dirigido por Herbert Chapman vencera por 1 a 0 graças a um contestado pênalti (o primeiro marcado numa final da taça), decorrente de uma infração que na verdade aconteceu fora da área. A possibilidade de revanche era, portanto, uma motivação a mais para a equipe de Lancashire.


Naquela temporada, o Preston vinha cumprindo ótimo papel e terminaria em terceiro lugar na liga, após brigar pelo título com o Arsenal (que acabaria campeão) e o Wolverhampton. Já o Huddersfield faria campanha mais modesta, terminando em 15º lugar. Entretanto, o equilíbrio da liga inglesa naquele momento é digno de nota: embora 12 posições abaixo dos Lilywhites, o time de Yorkshire somaria apenas dez pontos a menos (39 contra 49).



Na FA Cup, o único outro torneio disputado então pelos clubes ingleses (a Copa da Liga só seria criada em 1960), o Preston esperava ter melhor sorte do que em sua participação no ano anterior, quando chegou à decisão, mas caiu de virada diante do Sunderland por 3 a 1. No caminho até sua quinta final, vencera em seu estádio de Deepdale o West Ham (3 a 0) e o Leicester (2 a 0) nas duas primeiras rodadas. Em seguida, batera o Arsenal em Highbury (1 a 0) e o Brentford em Griffin Park (3 a 0), antes de eliminar o Aston Villa nas semifinais (2 a 1), no campo neutro do Bramall Lane, em Sheffield.


O Huddersfield também chegava a sua quinta final e, como o Preston, só vencera o torneio uma vez, justamente no encontro anterior das duas equipes na decisão. Ao longo da trajetória naquela temporada de 1937-38, também havia feito seus dois primeiros jogos da copa em seu estádio de Leeds Road, batendo o Hull City (3 a 1) e o Notts County (1 a 0). Em seguida, foi a Anfield e despachou o Liverpool (1 a 0), antes de precisar de playoff para superar o York City (0 a 0 fora de casa e 2 a 1 em casa). Na semifinal, em Ewood Park (Blackburn), eliminou o atual campeão Sunderland, vencendo por 3 a 1.


O jovem Bill Shankly, médio-direito do Preston.

Um dado curioso no time do Preston para a final era a presença de nada menos que sete escoceses entre os 11 titulares. Cinco deles também estiveram em campo na segunda partida televisada da história, a vitória de 1 a 0 do Tartan Army sobre a Inglaterra naquele mesmo estádio em abril. Deste punhado, um nome se sobressai quando se lê hoje a escalação: um médio-direito de 24 anos, trazido do Carlisle em 1933 e perito no desarme chamado Bill Shankly.


Já o Huddersfield, que só contava com um não-inglês na escalação (o centroavante escocês Willie MacFadyen), teve apenas um jogador representado naquele amistoso, e pela Inglaterra: o médio direito Ken Willingham. Mas o centromédio e capitão Alf Young também contava com experiência internacional pelo English Team. Tarimba também era o que sobrava no ponta-direita Joe Hulme, quatro vezes campeão inglês pelo Arsenal e finalista da FA Cup pela quinta vez naquela ocasião, após vencer duas e perder duas atuando sempre pelos Gunners.


O rei George VI cumprimenta os jogadores do Huddersfield antes da partida.

Como sempre, o apito inicial foi precedido por diversos eventos. O maestro T.P. Ratcliff regeu a banda e o coro formado pelo público para entoar o tradicional hino religioso “Abide With Me”, o rei George VI (pai da atual monarca Elizabeth II) desceu ao gramado para cumprimentar os jogadores, um por um, e só depois de todo o cerimonial prévio é que a bola rolou. O jogo em si, porém, esteve longe de ser dos mais atrativos. Foram raras as chances reais de gol criadas nos 90 minutos, e o 0 a 0 levou a partida para a prorrogação.


No tempo extra, o jogo seguiu bem modorrento até os minutos finais. Ao ponto de Thomas Woodrooffe, o folclórico narrador da BBC, proferir, já nos últimos instantes, uma frase que se tornaria célebre: “Se sair algum gol agora, eu como meu chapéu!”. Quase imediatamente, o meia-direita do Preston George Mutch apanhou a bola e invadiu a área do Huddersfield, sendo travado faltosamente por Alf Young, o capitão dos Terriers. Pênalti apitado a trinta segundos do fim da partida.


Após o burburinho da reclamação dos jogadores do Huddersfield e da decisão dos atletas do Preston sobre quem cobraria a penalidade, Mutch – um dos que haviam defendido a Escócia contra a Inglaterra no jogo televisionado meses antes, no mesmo estádio – se apresentou e converteu com um chute alto, que tocou o travessão antes de entrar. O gol evitou que as duas equipes se reencontrassem num replay marcado para uma semana depois no Villa Park, em Birmingham. E deu ao Preston o último título de sua história.


Bill Shankly, que conquistou ali seu único título como jogador antes de embarcar numa carreira de técnico que ironicamente ganharia projeção pelo trabalho no Huddersfield antes de empilhar títulos no Liverpool, declarou anos mais tarde: “Quando o apito soa em Wembley e você jogou numa final e venceu, essa é a maior emoção da sua vida. Não há dúvida. Agradeci a Deus por isso. Aquela sensação é incrível”.


Infelizmente, ao que parece, não existe mais o registro da transmissão original feita pela BBC, apenas os filmes curtos feitos pelo British Pathé e pela Movietone, num modelo de cinejornal que inspiraria o nosso Canal 100. Ah! E, mais tarde, Woodrooffe de fato cumpriu a promessa. Quer dizer, não exatamente. Não comeu o próprio chapéu, mas um outro – na verdade um bolo feito de marzipã em formato de chapéu-coco – ao vivo diante das câmeras da emissora britânica.



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