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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

Os 30 anos de um épico: o título inglês agônico do Arsenal em Anfield


A bola já está na rede: Michael Thomas (à direita) corre para comemorar o gol do título.

Foi um desfecho inacreditável, para muitos o mais memorável da história do Campeonato Inglês. Em 26 de maio de 1989, há exatos 30 anos, num raríssimo confronto direto pelo título, o Arsenal vencia o Liverpool por 2 a 0 em Anfield, com um gol do meia Michael Thomas já nos acréscimos, sagrava-se campeão da liga depois de uma longa temporada e ainda encerrava seu jejum na competição após 18 anos de frustrações e descrença.


O título foi conquistado com os Gunners superando os Reds apenas no número de gols marcados, já que as duas equipes ficaram empatadas em pontos e no saldo de gols. E teve sabor ainda mais especial por ter sido levantado no lendário estádio onde o Liverpool – então dominante no futebol inglês – dificilmente era batido. E por ter reabilitado o futebol após a tristeza profunda da tragédia de Hillsborough, também ocorrida naquela temporada.


UM JEJUM DOLOROSO


Em maio de 1971, o Arsenal vivia momento glorioso: ao vencer a liga inglesa (superando o Leeds por um ponto) e a FA Cup (batendo o Liverpool de virada na prorrogação) se tornara apenas o segundo time no Século XX a conquistar a dobradinha nacional. Com o título da liga, os comandados de Bertie Mee ainda punham fim um jejum de 18 anos na competição. Mal sabiam os torcedores que o clube ficaria novos 18 anos sem aquele caneco.


Daquele momento histórico em diante, poucas vezes o Arsenal despontou de novo como sério candidato ao título inglês – embora chegasse a viver uma interessante fase “copeira” no fim da década de 1970. Somente em três curtos períodos, os Gunners estiveram no topo da tabela e pareceram, ainda que fugazmente, cotados à conquista: em fevereiro de 1973, em setembro e outubro de 1984 e entre novembro de 1986 e janeiro de 1987.


Todos esses três sonhos com um novo título morreram em Merseyside. Em 1972-73, o time ficou a três pontos do campeão Liverpool. Em 1984-85, desabou melancolicamente para o sétimo lugar ao fim da campanha, terminando 24 pontos atrás do Everton. Já em 1986-87, acabou na quarta colocação, mas também distante dos Toffees: 16 pontos. Como ponto baixo, houve ainda o flerte com o rebaixamento nas temporadas 1974-75 e 1975-76.


George Graham, o ex-meia do Arsenal que topou a empreitada de levantar os Gunners.

Integrava aquele time da dobradinha de 1971 um dinâmico meia escocês chamado George Graham. Em maio de 1986, já após pendurar as chuteiras e iniciar a carreira de treinador com um excelente trabalho de recuperação no Millwall, ele foi chamado de volta a Highbury para o lugar de Don Howe (que se demitira em março) e tentar recobrar o entusiasmo em uma equipe apática, repleta de medalhões desmotivados e em fim de carreira.


Graham não era a primeira opção da diretoria: Terry Venables, que dirigia o Barcelona, havia sido sondado antes dele e recusou com veemência. Mas, com o tempo, o escocês se mostraria uma ótima solução, provavelmente mais acertada, até pela identificação prévia com o clube. E iniciaria um importante processo de reformulação com muitas dispensas. Mas, em vez de repor as peças com novas contratações, preferiu dar espaço à prata da casa.


Em sua primeira temporada, 1986-87, levaria a equipe à já citada liderança momentânea da liga, culminando num quarto lugar na classificação final. Mas, mais importante, ao título inédito da Copa da Liga – que já havia escapado do Arsenal por duas vezes nos anos 1960 – ao derrotar o Liverpool em Wembley por 2 a 1. Aquela era a primeira final no geral que o clube disputava em sete anos e o primeiro caneco levantado desde o da FA Cup em 1979.


BONS SINAIS


O time desceu para o sexto lugar na liga na temporada seguinte e ainda perdeu a chance do bi da Copa da Liga ao ser surpreendido pelo Luton numa decisão repleta de reviravoltas. Mas ainda assim havia a percepção de que o trabalho de George Graham vinha sendo positivo e de que renderia novos frutos em breve. Era o que também apontava a pré-temporada de agosto de 1988, quando o time venceu um torneio amistoso em Londres.


Com duas vitórias categóricas - 4 a 0 sobre o Tottenham e 3 a 0 sobre o Bayern de Munique (esta, de especial significado no contexto pós-Heysel de banimento dos clubes ingleses das copas continentais pela Uefa) - o Arsenal faturou o Torneio Internacional de Wembley. Dali a dois meses, já com a temporada iniciada, conquistaria outro torneio, o que celebrou o centenário da liga inglesa, superando Queens Park Rangers, Liverpool e Manchester United.


Michael Thomas e Paul Davis, autores dos gols na final, comemoram o título do torneio do centenário da liga.

A vitória por 2 a 1 sobre os Red Devils, na final jogada no Villa Park no dia 9 de outubro, foi sacramentada com um gol que, ao fim da temporada, revelaria-se profético: num contra-ataque, ainda no primeiro tempo, o meia Paul Davis (que já havia aberto o placar minutos antes) lançou Michael Thomas, companheiro de setor, que avançou no espaço vazio, ficou cara a cara com o goleiro Jim Leighton e bateu para marcar o segundo gol dos Gunners.


Entretanto, por maior que fosse o entusiasmo em Highbury, aquela temporada 1988-89 da liga inglesa tinha um favorito bastante destacado: o Liverpool. Então detentor do título, o qual nadara de largas braçadas para conquistar, e contando com um time considerado um dos mais fortes já reunidos em Anfield na história, chegava ainda mais forte ao repatriar em agosto o goleador galês Ian Rush, vindo de uma temporada sem brilho pela Juventus.


Os outros times cotados à parte de cima da tabela – ou até ao título – eram os mesmos dos últimos anos, e também abriram os cofres para fazer frente. O Everton apostara alto no ponta Pat Nevin (Chelsea) e no goleador Tony Cottee (West Ham). O Manchester United trouxera Mark Hughes de volta do Barcelona. O Tottenham fisgara o meia Paul Gascoigne (Newcastle) e, dos Spurs, o Nottingham Forest recontratou o armador Steve Hodge.


O INÍCIO DA CAMPANHA


Quem largou na frente na temporada, porém, estava bem distante deste badalado grupo: o Norwich dirigido por Dave Stringer venceu suas quatro primeiras partidas e somou oito vitórias em seus 11 jogos iniciais, alcançando o topo da tabela em setembro e ficando até quase a virada do ano. No caminho, bateu Manchester United em Old Trafford e Liverpool em Anfield. Em certo ponto, chegou a abrir seis pontos de vantagem para o Arsenal.


Se o Liverpool patinava numa campanha abaixo do esperado, especialmente depois de perder o goleiro Bruce Grobbelaar, hospitalizado com meningite, e o meia dinamarquês Jan Molby, preso por dirigir alcoolizado, o Arsenal se recuperava de um começo um tanto irregular para engrenar uma boa sequência que o permitia acompanhar o Norwich de perto, apenas esperando um tropeço dos Canários para ultrapassá-los na ponta da tabela.


Os Gunners começaram a campanha com uma empolgante goleada de 5 a 1 fora de casa sobre o Wimbledon, atual campeão da FA Cup. Uma semana depois, porém, perderam em Highbury para um Aston Villa que vinha da segunda divisão. Em seguida, voltaram a vencer fora de casa no derby com o Tottenham em White Hart Lane, mas pararam num empate em casa com o Southampton e caíram diante do Sheffield Wednesday no campo do adversário.


Para piorar, logo o time perderia o experiente meia Paul Davis, desde 1980 na equipe e um “motorzinho” do setor. Na partida contra os Saints, numa discussão com o meia Glenn Cockerill, Davis acertou o adversário com um soco, flagrado apenas pelas câmeras de TV, e foi suspenso por nove jogos e multado em três mil libras. Presença constante na equipe ao longo da década, ele atuaria em apenas 11 partidas na campanha.


O lado positivo foi que a ótima sequência iniciada logo depois permitiu que a equipe titular se solidificasse. Foram seis vitórias e um empate entre o início de outubro e meados de novembro, incluindo goleadas nas visitas ao West Ham e ao Nottingham Forest (ambas por 4 a 1) e uma apertada vitória de 1 a 0 sobre o Newcastle no St James’ Park, com gol do zagueiro Steve Bould, que viera do Stoke como a única contratação para aquela temporada.


O TIME-BASE


A equipe titular começava com o goleiro John Lukic, descendente de iugoslavos, revelado pelo Leeds e que havia chegado ao Arsenal em 1983. À sua frente, jogava uma linha defensiva que marcaria época em Highbury. A começar pelos laterais: trazido do Stoke em janeiro de 1988 e ótimo apoiador, Lee Dixon jogava na direita, enquanto Nigel Winterburn, contratado do Wimbledon em meados de 1987, fazia o mesmo papel pelo lado esquerdo.


No miolo de zaga, o já citado Steve Bould revezava-se com o veterano irlandês David O’Leary, de 30 anos, e que já contava 13 temporadas como titular do Arsenal. Ao lado de um ou de outro, atuava aquele que se tornaria um pilar da defesa dos Gunners por quase duas décadas e já ostentava, desde janeiro daquele ano, a braçadeira de capitão, a qual herdara de O’Leary: o sólido zagueiro Tony Adams, então com apenas 22 anos de idade.


Time do Arsenal no álbum de figurinhas da liga naquela temporada.

No meio, devido à prolongada ausência de Paul Davis (primeiro pela suspensão e em seguida por lesões, a dupla da faixa central era formada pelo aguerrido Kevin Richardson, substituto de Davis que viera do Watford após ter levantado o título inglês com o Everton em 1985, e por Michael Thomas, outro produto das categorias de base assim como o antigo nome de referência do setor, e um jogador ágil e que empurrava o time para a frente.


Pela direita, atuava um dos jogadores mais talentosos e carismáticos daquela equipe, o ponta David Rocastle (apelidado “Rocky” pelos colegas), que aliava força muscular à técnica e logo chegaria à seleção inglesa. Já pelo flanco esquerdo jogava Brian Marwood, trazido do Sheffield Wednesday em março de 1988. Preciso nos cruzamentos, viveu naquela campanha seu melhor momento nos Gunners e um dos pontos mais altos da carreira.


Na frente, o goleador Alan Smith, vindo do Leicester em 1987, era excelente no jogo aéreo, mas também inteligente o bastante para fazer muito bem o papel de pivô, segurando a bola na frente para as infiltrações dos companheiros. Ao seu lado, como um segundo atacante, atuava outro jogador criado no clube e identificado com a torcida: o criativo e habilidoso Paul Merson, que também costumava recuar para participar mais da armação de jogadas.


O elenco era completado com pratas da casa, como o zagueiro Gus Caesar, o ponta-esquerda Martin Hayes e o centroavante irlandês Niall Quinn, além do meia-atacante Perry Groves, que havia sido o primeiro contratado de George Graham ao chegar ao clube, vindo do modesto Colchester. No total, o treinador utilizaria apenas 17 jogadores durante toda a temporada, incluindo os 38 jogos da liga, mais as partidas pelas copas inglesas.


NO TOPO DA TABELA


Com a equipe titular bem consolidada e azeitada, o mês de dezembro foi crucial para assumir a liderança do campeonato. O time empatou em 1 a 1 com o Liverpool em Highbury e segurou o Norwich num 0 a 0 em Carrow Road. Em seguida, venceu o Manchester United por 2 a 1 e viajou para bater o Charlton por 3 a 2 na rodada de Boxing Day e derrotar categoricamente o Aston Villa em Birmingham por 3 a 0 no último dia de 1988, alcançando o topo da tabela.


Os Gunners adentraram o ano seguinte com duas vitórias importantes sobre adversários fortes: 2 a 0 no Tottenham em Highbury e 3 a 1 no Everton dentro do Goodison Park. Mais dois triunfos e dois empates estenderam a série invicta na liga a 11 partidas, após um 0 a 0 diante do Queens Park Rangers em Loftus Road no dia 18 de fevereiro. Naquela altura, o Liverpool vinha só em sexto, 15 pontos atrás dos Gunners, ainda que com um jogo a menos.


Foi quando o Arsenal começou a tropeçar. Após o empate sem gols em Loftus Road, a sequência sem derrotas ruiu diante do Coventry, que venceu por 1 a 0 em Highfield Road. E dos quatro jogos em casa consecutivos que os Gunners teriam na virada de fevereiro para março, só um terminou em vitória: 2 a 0 no Luton. O time perdeu pontos bobos em empates com Millwall (0 a 0) e Charlton (2 a 2) e em uma derrota para o Nottingham Forest (3 a 1).


E foi justamente em março que o Liverpool, agora “inteiro”, com Grobbelaar e Molby de volta, começou a engrenar, redescobrindo seu poderio ofensivo após uma opaca primeira metade de campeonato. A vitória sobre o Charlton por 2 a 0 em Anfield no dia 1º daquele mês foi a primeira de uma sequência de nove triunfos, que incluíram goleadas sobre o Middlesbrough (4 a 0 em Ayresome Park), Luton (5 a 0) e Sheffield Wednesday (5 a 1).


A TRAGÉDIA QUE MARCOU A TEMPORADA


O Arsenal ensaiou uma reação, batendo o Southampton em The Dell (3 a 1) e arrancando um empate com o Manchester United em Old Trafford (1 a 1), além de vencer o Everton em Highbury (2 a 0) no dia 8 de abril. Mas, três dias depois, quando o Liverpool bateu o Millwall em Londres por 2 a 1, com gols de John Barnes e John Aldridge, ele já havia tomado a liderança da liga no saldo de gols. Até que chegaram, no dia 15, as semifinais da FA Cup.


Em um dos duelos, o Norwich – em terceiro na liga, a sete pontos dos líderes e ainda alimentando o sonho de uma inimaginável dobradinha – enfrentaria o Everton no Villa Park. O outro confrontaria Liverpool e Nottingham Forest no estádio de Hillsborough, em Sheffield. Mas mal chegou a começar: a superlotação no setor da torcida dos Reds e a negligência dos organizadores provocaram a morte de 96 pessoas, muitas delas esmagadas.


A maior tragédia da história do futebol inglês chocou toda a comunidade esportiva do país e, mais adiante, implicaria em mudanças profundas nos estádios e na própria cultura de arquibancada. Mas, de imediato, levou ao adiamento em mais de um mês do confronto direto entre Liverpool e Arsenal em Anfield, anteriormente marcado para 23 de abril. Enquanto tentavam se recuperar emocionalmente, os Reds ficariam 17 dias sem jogar.


No mesmo dia fatídico em Hillsborough, o Arsenal venceu o Newcastle em Highbury por um suado 1 a 0, gol de Brian Marwood, que o recolocou na liderança. Não houve celebrações, porém: atordoados com as notícias que chegavam de Sheffield, os jogadores dos Gunners permaneceram em choque nos vestiários, sem dizer uma palavra. Houve quem também se desesperasse atrás de informações sobre amigos que haviam ido a Sheffield.


No início de maio, quando os jogos voltaram após o longo luto, o Arsenal se manteve na ponta ao golear o Norwich por 5 a 0 em Highbury no dia 1º, pondo fim às chances de título dos Canários. Cinco dias depois, bateram o Middlesbrough fora por 1 a 0. Há quatro jogos sem sofrer gols, os Gunners colhiam até ali os frutos da mudança tática feita por George Graham, que trocou o lesionado ponteiro Marwood por um esquema com três zagueiros.


Michael Thomas na goleada sobre o Norwich: tirando um concorrente da briga.

O Liverpool também pareceu surpreendentemente refeito da tragédia em Sheffield. Após um empate sem gols no derby de Merseyside em Goodison Park, voltou à carga com quatro vitórias pela liga, além de vencer a partida adiada contra o Nottingham Forest pela semifinal da FA Cup. No dia 20, conquistou a copa numa final contra o Everton, vencida na prorrogação por 3 a 2 em meio à comoção que uniu os torcedores de ambos os rivais.


No processo, os Reds haviam também retomado a liderança do campeonato, após dois vacilos incríveis do Arsenal. No dia 13 de maio, enquanto o Liverpool batia o Wimbledon em Londres, os Gunners perdiam em casa para o Derby (que já os havia derrotado no Baseball Ground) por 2 a 1. Quatro dias depois, eles entregariam de vez a ponta da tabela ao time de Kenny Dalglish ao empatar com o mesmo Wimbledon, novamente em casa, por 2 a 2.


Seis dias depois daquele novo tropeço do Arsenal, o Liverpool goleava o West Ham por 5 a 1 e abria três pontos de vantagem sobre os Gunners, tendo ainda quatro gols a mais de saldo, apesar de ter balançado as redes menos vezes. Assim, no confronto direto em Anfield que encerraria a temporada no dia 26 de maio, poderia se dar ao luxo de perder por um gol de diferença que levantaria o caneco do mesmo jeito. E tinha todas as escritas a seu favor.


A HORA DA DECISÃO


Para começar, o Arsenal não vencia o Liverpool em Anfield desde novembro de 1974. Os Reds, que ambicionavam se tornar o primeiro clube a fazer a dobradinha duas vezes, não perdiam em casa por dois gols de diferença há três anos. Além disso, na outra vez em que dois times decidiram o título da liga em confronto direto, o perdedor havia sido exatamente o Arsenal, goleado pelo Manchester United por 6 a 1 em Old Trafford em 1951-52.


Enquanto o Arsenal lamentava os indesculpáveis tropeços em casa que quase lhe tiraram a taça das mãos, o Liverpool parecia confirmar sua vocação para ganhar a liga mesmo depois de um mau começo, como havia acontecido nas arrancadas furiosas das temporadas vencedoras de 1981-82 e 1985-86. E contava com a fase impressionante de John Aldridge, que anotara nada menos que 22 gols nos últimos 23 jogos, somadas todas as competições.


Pareciam favas contadas: após a goleada dos Reds sobre o West Ham, o caderno de esportes do Daily Mirror estampou: “Nem adianta rezar, Arsenal”. Graeme Souness, velho ídolo em Anfield, tratava o jogo como o duelo entre “garotos” (do Arsenal) e “homens” (do Liverpool). E mesmo em Merseyside, a confiança era enorme: o sucessor de Souness como “hard man” do meio-campo, Steve McMahon, declarava que “o Arsenal não nos preocupa”.


A partida foi realizada numa noite agradável de sexta-feira e – coisa rara naqueles tempos – teve transmissão direta da ITV, que ao início da temporada havia desembolsado £44 milhões para exibir o campeonato com exclusividade por quatro anos. Ao entrarem em campo, os jogadores do Arsenal presentearam os torcedores em vários setores do estádio com flores, em respeito e memória aos que haviam perdido a vida em Hillsborough.


Kevin Richardson e o reserva Perry Groves (de agasalho) distribuem flores na entrada do Arsenal em campo.

George Graham havia mantido o esquema dos últimos jogos: o time, que entrou em campo vestindo seu uniforme número dois (camisas amarelas com mangas azuis, calções azuis e meias amarelas), teria David O’Leary atuando como líbero atrás da sólida linha Dixon-Adams-Bould-Winterburn. No meio, Merson seria deslocado para atuar pelo lado esquerdo, formando um quarteto com Rocastle, Thomas e Richardson. E Smith seria o único atacante.


O JOGO FINAL


Embora precisasse vencer por dois gols de diferença, a estratégia dos Gunners era clara e fazia sentido: a ideia era picotar o jogo de passes dos Reds, deixá-los desconfortáveis em sua própria casa – especialmente para impacientar a torcida – e sobretudo tentar levar pelo menos o empate para o intervalo. No segundo tempo, a ideia era tentar o primeiro gol logo cedo para deixar a partida em aberto. E foi exatamente isso o que aconteceu.


A melhor chance do primeiro tempo foi do Arsenal: Michael Thomas foi à linha de fundo e cruzou para a cabeçada firme de Steve Bould, o zagueiro que vestia a camisa 10 naquele dia. Com o goleiro Bruce Grobbelaar já batido no jogo aéreo, os Reds foram salvos pelo lateral Steve Nicol, que tirou de cabeça. E o jogo foi para o intervalo sem gols. “A pressão está neles”, insistia o técnico George Graham no vestiário, referindo-se ao Liverpool.


O script seguiu com o primeiro gol logo no início da etapa final: aos seis minutos, o árbitro Dave Hutchinson marcou um tiro livre indireto – pé alto de Ronnie Whelan em David Rocastle – perto do bico da área do Liverpool, pelo lado direito. Nigel Winterburn levantou com curva para a área, e Alan Smith veio de trás para desviar de cabeça, surpreendendo toda a defesa dos Reds, que, após alguns segundos de incredulidade, correu até o juiz.


Falta um: Alan Smith desvia de cabeça para abrir o placar em Anfield.

A reclamação do time do Liverpool era um tanto difusa. Queriam encontrar alguma irregularidade no lance, mas não havia nada. A falta era mesmo em dois lances, Smith havia desviado a bola com a cabeça, não havia impedimento nem nenhuma outra infração a ser marcada. Mesmo jogando em casa e ainda em vantagem, era um indício de que os Reds perdiam o controle psicológico do jogo. Mas ainda assim poderiam ser campeões.


O Arsenal, por outro lado, passou a arriscar mais. George Graham trocou Merson pelo ponteiro Martin Hayes e, três minutos depois, desmontou o esquema com três zagueiros substituindo Bould pelo meia-atacante Perry Groves. Entre as duas substituições, Michael Thomas perderia uma grande chance, recebendo passe de Kevin Richardson sozinho na área, na altura da marca do pênalti, mas finalizando fraco para a defesa de Grobbelaar.


Quando o jogo adentrou no último minuto do tempo regulamentar, Kevin Richardson sentiu uma lesão e precisou ser atendido em campo, paralisando a partida. Foi quando David Pleat, então técnico do Leicester e comentarista do jogo para a ITV, sintetizou: “Se o Arsenal vier a perder o campeonato, depois de abrir tamanha vantagem antes, haverá uma certa justiça poética no fato de o time vencer a última partida, mesmo não sendo campeão”.


“Eles vão encarar isso como um consolo bastante pobre, David”, rebateu o narrador Brian Moore, enquanto, já nos descontos, o zagueiro Alan Hansen recuava a bola para Grobbelaar para gastar tempo. O goleiro então deu um chutão para a frente que, após um bate e rebate, originou um ataque do Liverpool com John Barnes pela ponta direita. Ao entrar na área, porém, o camisa 10 dos Reds foi bloqueado por um já refeito Richardson.


O volante dos Gunners entregou a bola para o goleiro John Lukic, que fez a reposição com as mãos alcançando Lee Dixon na lateral direita. O camisa 2 então deu um chutão para a frente, numa tentativa desesperada de iniciar a última jogada. Alan Smith recolheu o lançamento na intermediária ofensiva, girou e encontrou Michael Thomas desmarcado, iniciando uma arrancada pelo centro do campo. Passou então a bola ao meia.


Nascido no subúrbio londrino de Lambeth, ao sul do Tâmisa, Thomas havia sido lançado no time de cima dos Gunners como lateral-direito, no início de 1987. Seu misto de força física e explosão muscular com a boa técnica agradou de imediato aos torcedores. Mais tarde, com a vinda de Lee Dixon, foi remanejado para o meio-campo. Mas manteve como característica as vibrantes arrancadas ao ataque. Naquele jogo em Anfield já tentara algumas.


A última viria naquele instante, quando o segundo tempo já se aproximava dos 47 minutos. Ao receber o passe de Alan Smith, ele arrancou num espaço vazio no meio da intermediária defensiva do Liverpool. Quase perdeu a jogada quando a bola bateu no corpo de Steve Nicol, mas, por sorte, voltou ao seu controle. Evitou mais um defensor que chegava e de repente se viu cara a cara com Grobbelaar, que saía desesperado do gol. Deu um leve toque por cima do arqueiro e partiu para o abraço.


O Arsenal conseguia o resultado improvável, inacreditável. O Liverpool ainda tentaria um ataque, mas logo Thomas apareceria para ganhar a jogada e tranquilizar num recuo a Lukic. Logo viria o apito final, para o delírio dos torcedores londrinos em Anfield. O longo jejum e todos os tabus foram esquecidos. Numa temporada marcada pela tragédia de Hillsborough, seu desfecho épico redimiu o futebol. A taça foi entregue e levantada ali mesmo.


“No fim das contas, o Arsenal mereceu”, foram as palavras diplomáticas de Kenny Dalglish após a partida. A torcida do Liverpool também se comportou de maneira notável, aplaudindo os campeões e reconhecendo seu mérito. Os Reds voltariam a conquistar a liga no ano seguinte, mas pela última vez desde então. Aquela vitória dos Gunners em Anfield já anteciparia um novo equilíbrio de forças que passaria a viger no futebol inglês.


Devido à suspensão dos clubes ingleses pela Uefa, o Arsenal não pôde medir forças na Copa dos Campeões na temporada seguinte. Mas, quase com o mesmo time, retomaria o título nacional em 1991 com campanha brilhante. Ironicamente, a temporada 1990-91 seria a última completa do herói Michael Thomas com os Gunners. Após desentender-se com George Graham, ele seria negociado em dezembro daquele ano. O destino? O Liverpool.


Campeões: no gramado de Anfield, o Arsenal celebra a conquista épica.

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