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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

Os 40 anos de história da presença negra na seleção inglesa principal


Viv Anderson entra em campo contra a Tchecoslováquia em novembro de 1978: fazendo história.

Ocorrida há exatos 40 anos, a estreia do lateral-direito Viv Anderson no English Team em amistoso contra a Tchecoslováquia em Wembley, foi um marco no futebol do país. Representava não apenas a queda de um tabu, por se tratar do primeiro jogador negro a vestir a camisa da seleção principal, mas um passo decisivo para a inserção de uma comunidade que nas duas décadas anteriores já vinha aos poucos ocupando seu espaço na antiga metrópole colonial.


Foi também uma pequena vitória da sensatez sobre o racismo estúpido que começava a transbordar de setores da sociedade para os estádios de futebol. Neste texto, abordamos aspectos sobre aquela partida histórica, mas não só: traçamos uma pequena história social da presença afrodescendente no futebol inglês (ainda que vinda predominantemente de jogadores originários das antigas colônias britânicas no Caribe) e de sua evolução até chegar à participação massiva no atual contexto de clubes e seleção.


Jack Leslie, goleador do Plymouth nos anos 20: derrotado pelo preconceito.

OS QUASE PIONEIROS


Antes de Viv Anderson, outros estiveram perto de serem os pioneiros – ou foram, de certa forma. Conta-se que em outubro de 1925, mais de meio século antes, o centroavante Jack Leslie, negro nascido em Londres e que balançou as redes mais de 400 vezes nos 15 anos em que defendeu o Plymouth Argyle, soube por seu técnico no clube de que havia sido convocado pela seleção inglesa. Mas logo em seguida, o atacante recebeu um comunicado cancelando sua chamada, sob a alegação de que os dirigentes não haviam percebido que ele era um “homem de cor”.


Nos anos 60 e 70, houve casos pontuais em equipes de base: o lateral John Charles, do West Ham, fez três jogos por uma seleção sub-18 em 1962. Já no começo da década seguinte, em março de 1971, Benjamin Odeje e Cliff Marshall, ambos com 15 anos na época, defenderam uma seleção inglesa escolar num amistoso contra a Irlanda do Norte em Wembley. Por fim, em abril de 1977, foi a vez do ponta Laurie Cunningham, do West Bromwich Albion, estrear na seleção sub-21 marcando o único gol na vitória sobre a Escócia no estádio de Bramall Lane, em Sheffield.


O CONTEXTO SOCIAL


A população negra começa a se fazer presente em números mais expressivos no Reino Unido – em especial na Inglaterra – a partir do fim dos anos 50, quando da descolonização de vários antigos territórios pertencentes ao Império Britânico no Caribe e na África, e da subsequente imigração de habitantes destas ex-colônias para a metrópole. São os descendentes desta primeira geração de famílias imigrantes – nascidos ou criados desde pequenos em solo britânico – que passarão a ocupar cada vez mais espaço no futebol inglês a partir de meados dos anos 70.


Desde a década anterior, porém, uma forte reação a essa imigração em massa já borbulhava dentro do país, fomentada por membros conservadores do Parlamento britânico e levada às ruas por movimentos caracterizados pela defesa da “supremacia branca” no Reino Unido, como o National Front e o British Movement. Estes grupos aos poucos foram estendendo seus tentáculos também ao futebol, recrutando jovens torcedores nos estádios e insuflando neles o ódio racial, mais um componente na receita do hooliganismo já crescente.


Como se não bastassem as agressões vindas das arquibancadas, com bananas arremessadas ao gramado, xingamentos e gritos imitando macacos, os jogadores negros naquele tempo tinham que enfrentar a desconfiança dos próprios técnicos e companheiros. Corria dentro do futebol inglês a ideia de que os atletas negros eram preguiçosos, não tinham garra ou coragem (ou, em outras palavras, “afinavam”) e não suportariam o inverno rigoroso. O preconceito estava por toda a parte, dentro e fora das quatro linhas.


Diante disso, menos de uma dezena dos 22 clubes da elite inglesa naquela temporada 1978-79 contavam com algum jogador negro em seu elenco. Destes que contavam, a maior parte tinha só um. E de poucos podia-se dizer que eram titulares ou que atuavam regularmente. Tudo isso somado, para a parte racista e xenófoba dos torcedores, um negro vestindo a camisa da seleção inglesa era francamente inadmissível. Era dentro desse contexto que Viv Anderson era convocado pela primeira vez, para o amistoso da Inglaterra contra a Tchecoslováquia em Wembley.


Viv Anderson no Nottingham Forest: um dos pilares do surpreendente time do fim dos anos 70.

VIV, O QUE ENTROU PARA A HISTÓRIA


Viv Anderson era um desses poucos a ocuparem a titularidade em seus clubes. E mais: não era só o dono da lateral-direita do Nottingham Forest, detentor do título inglês quando da convocação, como também peça importante no esquema do técnico Brian Clough. Era ele quem fazia as jogadas de ultrapassagem e apoio pelo lado direito do ataque, além de ser um perito no desarme. Eram suas qualidades técnicas, táticas e físicas indiscutíveis que justificavam plenamente sua presença entre os relacionados pelo treinador da seleção, Ron Greenwood – que como técnico do West Ham nos anos 60, já havia trabalhado com alguns atletas negros os quais promovia da base.


Nascido na própria Nottingham, mais exatamente na região de Clifton, em 29 de julho de 1956, Viv chegou ao Forest em agosto de 1972, assinando como aprendiz, depois de ter sido dispensado pelo Manchester United. Dois anos mais tarde, tornaria-se profissional, meses antes de chegada de Clough. Na época, o clube disputava a segunda divisão sem fazer grande campanha, mas aos poucos se reergueria sob o comando do técnico, contando sempre com o futebol do lateral alto (1,85 metro) e corpulento, mas muito ágil e inteligente.


Oito meses antes de estrear quebrando a barreira na seleção principal, Viv Anderson havia atuado também pela sub-21 ao lado de Laurie Cunningham na vitória por 2 a 1 sobre a Itália em Maine Road. A partida disputada em 8 de março de 1978 valia pelas quartas de final do Campeonato Europeu da categoria, disputado no sistema eliminatório em ida e volta. O hábil Cunningham, aliás, estava no grupo dos possíveis pioneiros a serem convocados, assim como o centroavante Cyrille Regis, seu colega de clube, curiosamente nascido na Guiana Francesa.


Laurie Cunningham marca pela seleção sub-21 contra a Escócia em 1977: um dos pioneiros.

A PARTIDA


O amistoso contra os tchecoslovacos, em novembro de 1978, fazia parte do primeiro ciclo de trabalho integral de Ron Greenwood à frente da seleção, com o objetivo de levar a Inglaterra à Eurocopa de 1980, a ser disputada na Itália. O treinador havia assumido o cargo em agosto de 1977, em plenas Eliminatórias para a Copa do Mundo, tendo de apagar o incêndio deixado pelo demissionário Don Revie e ainda tentar salvar a equipe de ficar de fora de seu segundo Mundial seguido – o que não conseguiria. A decepção obrigaria a outra renovação no time.


Na lateral direita, Greenwood tratou de manter Phil Neal, do Liverpool, como seu titular nos primeiros jogos, a exemplo do que Revie havia feito em seus derradeiros. Também vivendo grande momento em seu clube, Neal era um lateral muito bom no apoio e melhor ainda nas bolas paradas, de modo que seria difícil desbanca-lo naquele momento. Mas com um grupo acessível nas Eliminatórias para a Eurocopa mais alguns amistosos previstos no calendário, não faltariam ocasiões para que novos nomes fossem testados na seleção.


Naquela noite fria de 29 de novembro, o gramado congelado prejudicou o nível técnico do jogo, mas não impediu que Viv Anderson fizesse atuação segura contra o adversário, surpreendente campeão europeu dois anos antes, mas cujo cartaz já havia diminuído um pouco devido à não classificação para a Copa da Argentina. Foi, porém, uma partida bastante igual, em que o empate não teria sido um resultado injusto. E que acabou decidida numa jogada iniciada justamente pelo lateral estreante, já aos 23 minutos da etapa final.


Numa descida ao ataque, Viv apoiou na diagonal para dentro – como Phil Neal estava mais acostumado a fazer – e, da meia direita, fez a abertura da jogada na ponta para Tony Currie, meia-atacante do Leeds, que cruzou rasteiro em direção à pequena área. O goleiro tchecoslovaco Pavel Michalík e seus defensores se atrapalharam com o piso escorregadio, e a bola sobrou para Steve Coppell, ponta-direita do Manchester United, concluir numa infiltração, para a celebração dos cerca de 92 mil torcedores presentes a Wembley.



OBSTÁCULOS INICIAIS


Gradualmente, outros jogadores negros ganhariam chances. Laurie Cunningham estrearia pela seleção principal em maio do ano seguinte. Enquanto isso, na seleção sub-21, nomes como Bob Hazell, Cyrille Regis, Luther Blissett, Garth Crooks, Vince Hilaire e Justin Fashanu despontavam até a metade de 1980, pleiteando um lugar também na equipe principal. Mas a absorção ainda seria lenta. Destes, apenas Regis estrearia sob o comando de Ron Greenwood, em fevereiro de 1982, já às vésperas da Copa do Mundo da Espanha.


Dessa forma, quando chegou a Eurocopa de 1980, Viv Anderson era o primeiro negro a integrar uma seleção inglesa num grande torneio de seleções – e o único entre os 20 convocados. Ganharia uma oportunidade de atuar na última partida, contra a Espanha, quando os ingleses já não tinham chances de avançar à final. Mas atuou bem na vitória por 2 a 1. Dois anos depois, no Mundial espanhol, voltaria a ser o único negro convocado, mas teria ainda menos espaço.


Tudo por conta de uma decisão insólita de Ron Greenwood na convocação e escalação do time. O técnico levou quatro laterais: Viv Anderson (só direito), Phil Neal (preferencialmente direito), Mick Mills, do Ipswich (ambidestro, mas que vinha jogando na esquerda no clube), e Kenny Sansom, do Arsenal (só esquerdo). Desprovido de seus dois potenciais capitães – Kevin Keegan e Trevor Brooking – por lesão, o treinador optou por entregar a braçadeira a Mills, mas remanejando-o para a direita a fim de preservar Sansom na esquerda.


Viv Anderson, o sexto na fileira do alto: solitário representante no elenco de 1982.

Na prática, a medida tornava Anderson a terceira opção para sua própria posição. Na última partida da primeira fase, contra o Kuwait, quando Sansom e alguns titulares foram poupados, Greenwood voltou com Mills para a esquerda e escalou Neal na direita, mais uma vez prescindindo do lateral do Nottingham Forest. Ao fim do torneio, ele seria um dos três jogadores de linha a não ter entrado em nenhum dos cinco jogos da Inglaterra.


A PRESENÇA INTENSIFICADA


A chegada de Bobby Robson ao comando da seleção para o posto do aposentado Ron Greenwood após a Copa de 1982 trouxe, pelo menos de início, novas e boas perspectivas aos jogadores negros, em número cada vez maior no futebol inglês. Naquele momento, no auge do acirramento do ódio racial nos estádios, o novo selecionador incluiu seis jogadores negros entre os 22 que integrariam o elenco para o amistoso contra a Alemanha Ocidental em Wembley, em outubro daquele ano.


Mark Chamberlain, ponteiro do Stoke: uma das novidades de Bobby Robson no pós-Copa de 1982. Décadas depois, seu filho, Alex Oxlade-Chamberlain, também defenderia a Inglaterra.

Viv Anderson era um deles, assim como Cyrille Regis – que, no começo do ano, ao ser convocado para um amistoso contra a Irlanda do Norte, que enfim marcaria sua estreia na seleção, recebeu pelo correio uma bala de revólver dentro de um envelope, num gesto de intimidação por parte de grupos racistas.


Os outros quatro eram estreantes que vinham se destacando em times pequenos: o volante Ricky Hill (Luton), os pontas Mark Chamberlain (Stoke) e John Barnes (Watford) e o centroavante Luther Blissett (também do Watford).


Destes, no entanto, apenas Viv Anderson e John Barnes estariam no elenco que viajaria ao México para a disputa da Copa do Mundo de 1986. Seriam, aliás, os dois únicos negros convocados. E só Barnes chegaria de fato a atuar, entrando aos 31 minutos do segundo tempo na derrota para a Argentina pelas quartas de final e criando duas ótimas jogadas pela linha de fundo. Numa delas, Lineker marcou o gol inglês. Na outra, nos instantes finais, a chance do empate que levaria o jogo para a prorrogação acabou desperdiçada pelo mesmo centroavante quase em cima da linha.


John Barnes encara a Argentina em 1986: o ímpeto que quase mudou a história do jogo.

Agora jogador do Arsenal, Viv Anderson mais uma vez não atuou. Seria o único jogador de linha da Inglaterra a não entrar em campo no Mundial. E também não jogaria na Eurocopa de 1988 (quando já defendia o Manchester United), sendo um dos três únicos convocados a não disputarem nenhuma partida – Barnes, mais uma vez o outro negro do elenco, foi titular em todos os jogos. A 30ª e última partida do lateral pelo English Team viria no empate com a Colômbia em Wembley, pela Copa Stanley Rous, um mês antes do torneio europeu.


No Mundial seguinte, na Itália, em que os ingleses fizeram sua mais celebrada participação desde o título de 1966, chegando às semifinais, John Barnes figurava novamente na equipe, mas teve desempenho irregular, entrando e saindo do time. Melhores foram os outros dois negros convocados: o ágil zagueiro Des Walker, do Nottingham Forest, e o dinâmico lateral-direito Paul Parker, do Queens Park Rangers, que também chegou a jogar no centro da defesa, compensando com boa impulsão sua diminuta estatura (1,70 metro).


SEGUINDO A NOVA REALIDADE


Aquela Copa seria o fim da era Bobby Robson no comando. E seu sucessor, Graham Taylor, também promoveu um novo influxo em massa na seleção. Só em 1991, seu primeiro ano completo à frente do time, promoveu a estreia de nada menos que oito atletas afrodescendentes. Era, afinal, condizente com a realidade da liga inglesa, na qual clubes como Aston Villa, Crystal Palace e Wimbledon chegavam a ter por vezes mais da metade de seus times titulares formados por negros.


A Inglaterra na Eurocopa de 1992, com Des Walker (5), Carlton Palmer (12) e Tony Daley (agachado, 18).

Também seria Taylor o primeiro técnico do English Team a apontar um capitão negro: o nome que entraria para a história seria o do volante Paul Ince, do Manchester United, na partida contra os Estados Unidos pela US Cup, em junho de 1993. Ince seria um dos quatro afrodescendentes na seleção que disputaria a Copa do Mundo da França, em 1998, já sob o comando de Glenn Hoddle. Além dele, também figurariam os zagueiros Sol Campbell (Tottenham) e Rio Ferdinand (West Ham) e o atacante Les Ferdinand (também do Tottenham), primo de Rio.


Paul Ince no jogo contra os EUA pela US Cup de 1993: primeiro capitão negro.

Ince foi ainda um dos jogadores ingleses negros que cruzaram o Canal da Mancha para atuar no futebol da Europa continental, especialmente na então estelar Serie A italiana. O volante atuou por uma temporada na Inter de Milão. Antes, nos anos 80, Luther Blissett havia jogado no Milan e os zagueiros Paul Elliott (ex-Luton e Aston Villa) e Des Walker passaram por Pisa e Sampdoria, respectivamente. Além deles, o atacante Dalian Atkinson (ex-Sheffield Wednesday), que não chegou a atuar pela seleção principal, teve destaque no futebol espanhol defendendo a Real Sociedad.


A CONSOLIDAÇÃO


Na virada do século, o contexto já era bastante diferente do de 1978. Não só os ingleses já representavam uma parcela considerável dos jogadores afrodescendentes em atividade na nova Premier League (e nas divisões inferiores da liga), como também o país já importava atletas estrangeiros, sendo muitos deles negros vindos de nações como França, Holanda e Portugal, ou mesmo do próprio continente africano. Dessa forma, já era mais do que o momento de o público os assimilar de outra forma, e que a seleção seguisse pelo mesmo caminho.


O sueco Sven-Göran Eriksson (o primeiro não-inglês a comandar o English Team, ele próprio um símbolo da globalização do jogo) seria o grande catalisador dessa mudança durante o ciclo que levaria até à Copa do Mundo de 2002, a primeira do novo século. Em seus cinco anos e meio no cargo, promoveu a estreia de 16 jogadores negros – entre eles, muitos nomes que perdurariam, como Ashley Cole, Glen Johnson, Ledley King, Jermain Defoe, Theo Walcott e Aaron Lennon.

Time inglês que enfrentou os EUA em 2005 com sete afrodescendentes entre os titulares.

Isso se refletiu no grande salto no número de atletas negros convocados para aquele Mundial: nove, mais do dobro dos quatro que haviam participado do torneio de 1998, na França. Mais tarde, em maio de 2005, ainda sob o comando de Eriksson, a Inglaterra entrou em campo pela primeira vez em sua história com mais jogadores afrodescendentes (sete) do que brancos (quatro) em um amistoso contra os Estados Unidos em Chicago.


De lá para cá, o número de convocados para os Mundiais diminuiu para sete em 2006, aumentou para oito em 2010, voltou a cair, agora para apenas seis em 2014, mas atingiu seu recorde histórico na última Copa do Mundo, disputada na Rússia, quando 11 jogadores afrodescendentes estiveram entre os 23 convocados por Gareth Southgate, que levaram os Three Lions a uma semifinal de Mundial pela primeira vez desde 1990.

Nota: O asterisco indica que a Inglaterra não se classificou para a competição.

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