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Há 60 anos, o Liverpool enfim vencia a FA Cup encerrando longa espera

  • Foto do escritor: Emmanuel do Valle
    Emmanuel do Valle
  • 1 de mai.
  • 22 min de leitura

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Torneio de clubes mais antigo do mundo, a tradicionalíssima FA Cup, a Copa da Inglaterra, já era uma competição quase centenária naquele início dos anos 1960. E mesmo assim o Liverpool, um dos clubes mais tradicionais do país, ainda não tinha levantado o troféu, uma lacuna incompatível com sua grandeza e que já tinha virado até folclore na cidade. Até que a espera, que já durava cerca de sete décadas desde sua primeira participação, chegou ao fim em 1º de maio de 1965, quando a equipe dirigida pelo lendário Bill Shankly e incluindo vários jogadores que fariam história com os Reds bateu o Leeds após exaustiva prorrogação na decisão em Wembley e trouxe a taça na bagagem de volta a Merseyside.


UM TORNEIO QUE ESBANJAVA TRADIÇÃO


Criada em 1871, menos de uma década após o futebol ter sido oficialmente codificado, a Football Association Challenge Cup (que logo ficaria mais conhecida como FA Cup ou simplesmente "the Cup") é o torneio de clubes mais antiga da história do futebol. Se em outros países da Europa a copa nacional surgiu tardiamente ou nunca chegou a "pegar" entre o público, na Inglaterra a FA Cup manteve o prestígio e atratividade intactos por mais de um século, e sua final era um dos principais eventos do calendário esportivo do país.


Disputada em eliminatória simples, a competição reunia inclusive equipes amadoras e semiamadoras das categorias abaixo das quatro da Football League. Estas entravam no torneio já nas etapas preliminares, enquanto os clubes das divisões principais só começavam sua caminhada mais adiante na temporada, nas chamadas fases “proper”, ou seja, da competição propriamente dita, depois das fases classificatórias. Os da primeira e segunda divisões, por exemplo, iniciavam a partir da “third round proper”, em janeiro.


Os confrontos eram sempre em jogos únicos, com mando de campo definido no próprio sorteio em que era delineada a tabela. Porém, em caso de empate, haveria o chamado “replay”, um jogo-desempate com o mando invertido e a possibilidade de ser definido na prorrogação. Por muitos anos, até o início da década de 1990, os replays eram ilimitados, sendo jogadas quantas partidas extras fossem necessárias até ser apontado um classificado. Eventualmente, alguns dos jogos extras podiam ser disputados em campo neutro.


As semifinais também eram tradicionalmente jogadas em campo neutro, em estádios de terceiros. E a final tinha Wembley como palco desde a inauguração do estádio, em 1923. A decisão, aliás, parava a Inglaterra. Por décadas, foi o único jogo de futebol de clubes transmitido ao vivo no país. A cobertura tanto da TV quanto dos jornais era extensa, crescendo nos dias que antecediam a final e chegando ao ápice no dia da decisão. Nele, o jornal Evening Standard publicava um tradicional caderno especial em cores sobre o jogo.


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Para se ter uma medida do prestígio da final da copa, todo ano era certa a presença, nas tribunas do estádio, de algum membro da realeza britânica, responsável por entregar o troféu ao capitão do time vencedor, após os jogadores subirem as escadarias para recebê-lo. Com a taça na mão, os atletas campeões davam a volta olímpica à beira do gramado do gigantesco estádio, colocando um ponto final na temporada – via de regra, a decisão da FA Cup acontecia após o desfecho da liga, encerrando o calendário nacional do futebol.


O LIVERPOOL NA FA CUP


Desde a criação da copa até a edição de 1963-64, nada menos que 35 equipes já haviam tido seu momento de glória vencendo o torneio, incluindo as amadoras dos primeiros tempos. O Liverpool, no entanto, não figurava nesta lista, embora já contabilizasse seis conquistas da liga inglesa – a mais recente delas, justamente naquela última temporada. Fundado em 1892, o clube de Merseyside disputava a FA Cup desde a mesma temporada 1893-94 em que havia estreado na Football League, totalizando 61 participações copeiras.


E apesar do grande número de edições disputadas, só havia chegado duas vezes à final, perdendo ambas: em 1914 para o Burnley e em 1950, já em Wembley, para o Arsenal. E havia caído cinco vezes nas semifinais: em 1897 para o Aston Villa, em 1899 para o Sheffield United, em 1906 para o rival Everton, em 1947 para o Burnley e em 1963 para o Leicester. Durante todo o período do "entreguerras" (o intervalo entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial), os Reds não conseguiram se colocar nenhuma vez entre os quatro finalistas.


Entre os insucessos recentes, um dos maiores vexames aconteceu em 1959, quando o Liverpool, então na segunda divisão, foi desclassificado pelo modestíssimo Worcester City, da non-league. Já naquela temporada 1963-64, os Reds também caíram feio, perdendo em Anfield para o Swansea Town (atual Swansea City), 18º colocado da segunda divisão – o Liverpool era o quarto da primeira divisão – nas quartas de final. Para piorar, seguiam atrás do rival Everton, que, com os mesmos seis títulos da liga, já vencera a FA Cup duas vezes.


Na cidade de Liverpool há um conhecido monumento, um par de imensas estátuas de pássaros, uma fêmea e um macho, popularmente apelidados Bella e Bertie, pousados no topo das torres do imponente Royal Liver Building, situado às margens do rio Mersey. Diz a lenda que os pássaros tomam conta de Liverpool, um virado para o rio e o outro para a cidade. E por muitos anos circulou a piada de que se um dia o Liverpool enfim conquistasse a FA Cup, Bella e Bertie bateriam asas, voariam para longe, e a cidade deixaria de existir.


OS REDS NO PÓS-GUERRA


A volta do futebol na Inglaterra após a paralização forçada pela Segunda Guerra Mundial se deu na temporada 1945-46, com a disputa apenas da FA Cup. A liga voltou na campanha seguinte, e nela o Liverpool levantou seu quinto título, sob o comando do técnico George Kay e tendo como destaque do time o atacante Albert Stubbins, ex-Newcastle – e que, em 1967, seria eternizado ao aparecer na capa do clássico álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles. Mas logo após aquela conquista, o clube iniciaria um declínio.


Foram cinco temporadas seguidas ocupando posições discretas de meio de tabela até descer para um 17º lugar em 1952-53 e para a última posição – e o rebaixamento – em 1953-54. E se até ali o Liverpool nunca havia demorado mais de uma temporada para retornar à elite, desta vez ele amargaria nada menos do que oito anos até conseguir o acesso de volta à primeira divisão. Nesse meio-tempo, no fim de 1959 o clube demitiu o técnico Phil Taylor (no cargo há pouco mais de três anos) e apontou o escocês Bill Shankly para seu lugar.


Shankly era um ex-jogador do Carlisle e do Preston North End, onde atuou pela maior parte da carreira, interrompida pela Segunda Guerra e depois retomada. Chegou ainda a fazer um punhado de partidas pela seleção da Escócia. Após pendurar as chuteiras, em 1949, voltou ao Carlisle como técnico, passando depois pelo Grimsby, Workington e Huddersfield antes de chegar a outro clube da região norte do país, o Liverpool. Levaria duas temporadas e meia para reconduzir os Reds à elite – mas seu impacto no clube seria bem mais profundo.


Bill Shankly, o técnico que revolucionou os Reds.
Bill Shankly, o técnico que revolucionou os Reds.

Logo ao chegar, Shankly promoveu ampla reformulação no elenco, comandou a reforma do centro de treinamentos de Melwood e implementou novos métodos de treinos. Também transformou uma salinha utilizada para limpeza e conserto de chuteiras no estádio de Anfield Road, a chamada “Boot Room”, num local de discussões táticas com seus auxiliares. O escocês era ainda um excelente motivador, incutindo confiança aos jogadores. Mas seu maior legado foi criar uma nova identidade para o clube, aproximando-o dos torcedores.


Ambicioso, Shankly tinha como objetivo transformar o Liverpool num clube hegemônico não apenas no futebol inglês, como no europeu. E logo que recolocou os Reds na primeira divisão, começou a obter resultados expressivos. Na primeira temporada na elite, em 1962-63, o Liverpool terminou em oitavo no campeonato e alcançou as semifinais da FA Cup, caindo para o Leicester (que chegara a brigar pelo título da liga, terminando em quarto lugar) numa tarde de atuação excepcional do goleiro dos Foxes, um certo Gordon Banks.


E já na temporada seguinte – apenas a segunda após o acesso à elite – o Liverpool saltaria para o título. O começo foi um tanto irregular, mas a partir da vitória de 2 a 1 sobre o Everton no derby de Merseyside em Anfield, no fim de setembro de 1963, o time somou 22 vitórias em 30 jogos e confirmou seu sexto título do campeonato, pondo fim a um jejum de 17 anos, ao golear o Arsenal por 5 a 0 também em Anfield, em 18 de abril de 1964, quando restavam ainda três jogos por fazer. Era a primeira grande conquista de Shankly no clube.


A TEMPORADA 1964-65


Com a taça do Campeonato Inglês na galeria de troféus, o Liverpool brigaria em três frentes na temporada seguinte: a liga, na qual tentaria o bicampeonato; a Copa dos Campeões da Europa, na qual faria sua estreia em competições continentais; e a FA Cup, na qual tentaria a conquista inédita – a Copa da Liga, torneio de mata-mata disputado entre os clubes das quatro divisões da Football League, já existia desde 1960, mas o Liverpool, a exemplo de várias outras equipes da primeira divisão, declinou de participar nos primeiros anos.


Embora os Reds não enfrentassem dificuldade para despachar o fraco KR Reykjavik islandês na fase preliminar da Copa dos Campeões, o começo da campanha na liga foi bem aquém do esperado: no fim de outubro, o time havia perdido oito e vencido apenas quatro de seus 15 jogos até ali, incluindo derrotas em Anfield para o Leicester (1 a 0), o Manchester United (2 a 0) e um acachapante e humilhante 4 a 0 para o rival Everton. De atual campeão, o Liverpool passara a ocupar um bem modesto – e preocupante – 19º lugar no campeonato.


Mas novembro começaria com um empate em 1 a 1 diante do Fulham em Londres no dia 7, e ali a maré viraria. Daquele jogo em diante seriam 21 partidas sem perder, contando as três competições, até o fim de fevereiro. Antes da virada do ano, o Liverpool avançou mais uma fase na Copa dos Campeões superando o Anderlecht belga nos dois jogos. Ainda durante esta sequência, começaria a decidir uma vaga nas semifinais contra os alemães-ocidentais do Colônia. Também nesse intervalo, no início de janeiro, entraria na disputa da FA Cup.


A terceira fase da copa inglesa, que marcava a entrada dos clubes da elite, estava marcada para 9 de janeiro, e o Liverpool teria logo de cara um outro clube da primeira divisão como adversário, o West Bromwich Albion. Em 17º na liga, os Baggies não venciam há dez jogos, desde 24 de outubro. A última vitória, porém, havia sido justamente diante do Liverpool por um categórico 3 a 0 no estádio de Hawthorns, local onde também seria realizada a partida da FA Cup. O melhor momento dos Reds, no entanto, acabaria decidindo o confronto.


O Liverpool entrou em campo com uma novidade daquela temporada: o uniforme todo vermelho, criado por Bill Shankly e adotado inicialmente apenas nas copas, em vez do modelo com calções brancos, usado pelo clube ao longo de sua história até ali e preservado na liga (para 1965-66, a combinação monocromática se tornaria a oficial em todas as competições). A escalação daquela tarde nos Hawthorns também se tornaria o onze padrão dos Reds ao longo de toda a campanha na FA Cup, salvo exceções pontuais por lesão.


O time do Liverpool para a temporada 1964-65. Em pé: Milne, Byrne, Lawrence, Yeats, Lawler e Stevenson. Sentados: Callaghan, Hunt, St. John, Smith e Thompson.
O time do Liverpool para a temporada 1964-65. Em pé: Milne, Byrne, Lawrence, Yeats, Lawler e Stevenson. Sentados: Callaghan, Hunt, St. John, Smith e Thompson.

A EQUIPE BASE


O time começava pelo goleiro escocês Tommy Lawrence, que chegou ao clube em 1957, aos 17 anos, mas só estrearia com Shankly em 1962, logo firmando-se como titular. Ganharia da torcida o apelido de “The Flying Pig” (“O Porco Voador”) devido à sua agilidade, apesar de corpulento. Nas laterais, o novato Chris Lawler, 21 anos e cria do clube, ganhara naquela temporada a posição de Ronnie Moran pela direita, enquanto Gerry Byrne – também prata da casa, mas mais experiente (já tinha um jogo pela seleção inglesa) – fazia o lado esquerdo.

 

No centro da defesa, dois zagueiros vigorosos: o escocês Ron Yeats, capitão do time e apelidado o “Colosso de Anfield”, gigantesco em seu 1,88 metro de altura. Trazido por Shankly do Dundee United em 1961, foi instrumental para a campanha do acesso à primeira divisão e ao subsequente crescimento do time. Ao seu lado, outro novato: Tommy Smith, atacante convertido em zagueiro e tornado titular naquela temporada. Assim como Yeats, um jogador de imposição física. Curiosamente, usava a camisa 10 naquela campanha.


Smith vestia a 10 por ter entrado no time no lugar de um meia-armador, Jimmy Melia. Mas a troca de um meia por um zagueiro acabou empurrando para frente (da zaga para o meio-campo) outro titular: Gordon Milne, jogador experiente e dinâmico que Shankly pescou em seu ex-clube, o Preston, em 1960. Naquela temporada, ele passaria a formar a dupla de médios com o escocês Willie Stevenson, jogador de boa visão de jogo e o cobrador oficial de pênaltis do time, que aportara em Anfield vindo do Rangers em outubro de 1962.


O desenho tático do Liverpool partia do 4-2-4 básico, flexionando para o 4-3-3 ou o 4-4-2. E um dos nomes que permitiam essa mobilidade era o ponta-direita Ian Callaghan, médio transformado em ponteiro que recuava com frequência para compor o meio-campo. Pelo lado esquerdo, Peter Thompson também voltava quando necessário, mas era sem dúvida um ponta mais agudo, rápido e que buscava a linha de fundo. Ambos jovens promissores de 22 anos, Callaghan era prata-da-casa, enquanto Thompson era outro a vir do Preston.


No centro do ataque jogavam duas verdadeiras lendas de Anfield: Roger Hunt e o escocês Ian St. John. O primeiro havia atuado em clubes amadores até assinar com o Liverpool aos 20 anos, em julho de 1958. Sua estreia só viria em setembro de 1959, mas seu impacto seria imediato. Na temporada do acesso, 1961-62, marcou nada menos que 41 gols em 41 jogos pelo campeonato da segunda divisão, o que lhe valeu um lugar entre os convocados da seleção da Inglaterra para a Copa do Mundo do Chile, embora sem entrar em campo.


Hunt seguiria para se tornar o maior artilheiro do Liverpool no campeonato até hoje, com 244 gols em 404 partidas. Mas seu colega de ataque também faria história em Anfield: trazido do Motherwell em 1961, Ian St. John era um atacante que fugia do padrão de centroavante robusto, mas se mostrava muito inteligente na área e fora dela, recuando para puxar a marcação e abrir espaço na defesa adversária. Sua contratação, junto com a de Ron Yeats, foi apontada por Shankly como o “ponto da virada” do Liverpool naquele momento.


O COMEÇO DA CAMPANHA


Na estreia copeira contra o West Bromwich, o Liverpool saiu na frente a um minuto do fim do primeiro tempo, após Hunt receber um belo passe de Milne. Na etapa final, aos 18 minutos, seria a vez de Hunt servir a St. John para marcar o segundo. Mas o lance curioso da partida veio aos 32, quando Yeats, depois de sofrer a carga de dois jogadores dos Baggies e de ouvir um apito (vindo da arquibancada), pensou ter sido marcada a falta e pegou a bola com as mãos dentro da área. O árbitro então apitou – mas para marcar pênalti.


O West Brom, no entanto, não capitalizou em cima do lance: o lateral-direito Bobby Cram, cobrador oficial de pênaltis da equipe e que não havia desperdiçado nenhuma cobrança até ali na temporada, chutou para fora. Só a dez minutos do fim do jogo é que Jeff Astle enfim conseguiu marcar para os donos da casa, mas um gol insuficiente para forçar o replay. Com o 2 a 1, o Liverpool avançou numa fase em que, em meio a vários resultados notáveis, o mais surpreendente foi a vitória do Millwall, da quarta divisão, sobre o Fulham, da primeira.


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O Stockport, próximo adversário dos Reds, também havia conseguido dois resultados chocantes. Ocupando a lanterna da quarta divisão (ou seja, era o 92º colocado entre os 92 clubes da Football League), vinha de desclassificar em sequência o Grimsby e o Bristol Rovers, respectivamente o vice-líder e o líder da terceira divisão. O Liverpool, entretanto, não levou fé na zebra e por pouco não escapou de mais uma eliminação vexatória em seu histórico na competição ao receber os Hatters em Anfield no dia 30 de janeiro de 1965.


O time de Bill Shankly começou pressionando, mas sofreu um abalo quando, numa escapada aos 18 minutos, o veterano Len White – que chegara naquele mês ao Stockport vindo do Huddersfield – abriu a contagem para os visitantes, que se fecharam. O Liverpool, “tão imaginativo quanto abelhas batendo no vidro da janela”, como escreveu a crônica do Guardian, parou no bloqueio adversário e na grande atuação do goleiro Ken Mulhearn – que dali a três anos viria a ser o titular do Manchester City na conquista da liga inglesa.


No início da etapa final, os Reds empataram em jogada inesperada: a bola recuperada por Yeats na defesa chegou a Hunt e então a Milne, que finalizou rasteiro da entrada da área em meio a um cochilo da defesa do Stockport. No fim, o 1 a 1 levou a decisão da vaga ao replay, embora o Stockport tivesse motivo para reclamar de um pênalti não marcado ainda no primeiro tempo, quando o centroavante Ian Sandiford foi derrubado na área. De todo modo, os dois times voltariam a se encontrar dentro de quatro dias em Edgeley Park.


Mesmo jogando fora de casa, desta vez o Liverpool dominou amplamente, teve dois gols anulados (por impedimento e por toque de mão) antes da metade do primeiro tempo e acabou abrindo a contagem aos 38, quando St. John se deslocou pela esquerda e cruzou forte para Hunt só escorar para as redes. Mais objetivos e seguros de si do que no jogo de Anfield, os Reds espantaram de vez a zebra a cinco minutos do fim da partida, quando Hunt aproveitou um recuo malfeito pelo zagueiro Trevor Porteous e fechou o placar em 2 a 0.


TIRANDO A PEDRA DO SAPATO


Aquela fase da copa marcou a eliminação do atual campeão, o West Ham, num confronto londrino contra o Chelsea. E se o Liverpool escapou da zebra, o mesmo não se pode dizer do Arsenal, sétimo colocado na primeira divisão, que caiu diante do Peterborough, nono colocado da terceira. O próximo adversário dos Reds seria o Bolton, que havia sido rebaixado para a segunda divisão ao fim da temporada anterior, mas tinha histórico bem mais rico na FA Cup, com quatro títulos (1923, 1926, 1929 e 1958) em sete finais disputadas.


A partida disputada em Burnden Park no dia 20 de fevereiro de 1965 foi uma das duas únicas em que o time-base do Liverpool foi alterado: sem contar com Gordon Milne no meio-campo, Shankly escalou mais um atacante, Alf Arrowsmith, com Ian St. John atuando mais recuado. Com tantos homens de frente, os Reds apertaram o Bolton o jogo inteiro, tendo até uma chance salva em cima da linha. Mas a vitória de 1 a 0 só foi obtida aos 40 minutos da etapa final, depois que Thompson cruzou para a cabeçada de Callaghan.


Houve ainda reclamações de pênalti das duas partes: o Liverpool protestou num lance em que Hunt teria sido derrubado pelo lateral Roy Hartle, e o Bolton estrilou enfaticamente após um toque de mão de Byrne. Mas a vitória dos Reds se tornaria mais significativa pelo fato de Yeats ter atuado lesionado no centro da defesa desde a primeira etapa, num tempo em que as substituições ainda não eram permitidas. O resultado colocou o Liverpool entre as oito equipes que avançavam para as quartas de final, marcadas para o início de março.


O reserva Alf Arrowsmith, em seu único jogo na campanha, celebra o gol da classificação contra o Bolton.
O reserva Alf Arrowsmith, em seu único jogo na campanha, celebra o gol da classificação contra o Bolton.

Os Reds eram uma das seis equipes da primeira divisão entre os oito quadrifinalistas – o Crystal Palace, da segunda divisão, e o Peterborough, da terceira, completavam o quadro. Mas o sorteio não colocaria nenhum destes azarões no caminho do time de Bill Shankly. Pela frente haveria o Leicester, há tempos uma grande pedra no sapato do Liverpool. Os Foxes tinham vantagem histórica no confronto, iniciado em 1895: eram 21 vitórias contra 13 dos Reds, além de oito empates. E o retrospecto recente era ainda pior para o Liverpool.


Os números eram impressionantes: o Leicester vencera sete dos últimos oito confrontos, 12 dos últimos 20. E parecia não se intimidar nem mesmo em Anfield: levara a melhor nos três últimos jogos na casa do Liverpool e em cinco dos últimos dez. Além disso, a eliminação nas semifinais da FA Cup de 1963 em Hillsborough, Sheffield, estava atravessada na garganta do clube de Merseyside. Havia, portanto, inúmeras motivações especiais para os Reds de olho no jogo a ser disputado em Filbert Street, casa do Leicester, em 6 de março de 1965.


Foi, no entanto, um duelo travado. O Liverpool criou chances em maior número, mas voltou a parar em Gordon Banks. Por outro lado, o Leicester teve a oportunidade mais clara, num contra-ataque puxado por Mike Stringfellow que obrigou Tommy Lawrence a sair da área por muitos metros. O atacante dos Foxes, no entanto, não passou a bola ao seu companheiro Billy Hodgson, que tinha ótima posição para chutar ao gol vazio, e Lawrence conseguiu interceptar o lance despachando para longe aquela que seria a bola do jogo.


Quatro dias depois do 0 a 0 em Filbert Street viria o replay em Anfield. No primeiro tempo, os dois times atacaram, mas o Liverpool teve mais eficiência no bloqueio e criou mais ocasiões claras. Já na etapa final, o Leicester se esvaiu de vez, engolido pelos Reds, que enfim marcaram o gol da vitória por 1 a 0 aos 27 minutos. Callaghan sofreu falta no lado direito do ataque do Liverpool, Lawler levantou na área e Yeats ajeitou de cabeça para Hunt bater de virada, vencendo Banks e dando o troco aos Foxes pelos recentes revezes.


BRIGA DE CACHORRO GRANDE


As semifinais prometiam confrontos pesados: além do Liverpool, estavam na disputa nada menos que os três únicos times ainda com chances reais de brigar também pelo título da liga: Chelsea, Leeds e Manchester United, os três primeiros colocados no campeonato. O trio vislumbrava a possibilidade de fazer uma histórica dobradinha, que até ali no século só havia sido conquistada pelo Tottenham em 1961. Já os Reds, embora apenas em nono lugar no campeonato, seguiam vivos na disputa pela Copa dos Campeões da Europa.


Curiosamente, três dos quatro semifinalistas vinham de passagem recente pela segunda divisão: o Liverpool havia subido em 1962, o Chelsea em 1963 e o Leeds em 1964. Mas rapidamente já haviam se colocado como forças no futebol inglês daqueles meados de anos 1960, juntamente com um Manchester United que se reconstruíra lentamente após o luto pelo desastre aéreo de Munique, em 1958. Daquele quarteto, aliás, somente os Red Devils já haviam levantado a FA Cup na história, com três conquistas: em 1909, 1948 e 1963.


Em 27 de março, o Liverpool encararia o Chelsea no Villa Park (Birmingham), enquanto o Manchester United pegaria o Leeds em Hillsborough (Sheffield). Os Blues eram dirigidos pelo escocês Tommy Docherty, que, como jogador, havia sido contratado pelo Preston em 1949 para ocupar o lugar de Bill Shankly, então recém-retirado dos gramados. Docherty, 36 anos, era o mais jovem dos quatro técnicos e montara um time cheio de garotos talentosos, liderados pelo meia Terry Venables, camisa 10 e capitão do time com apenas 22 anos.


"Liverpool for the Cup": a torcida dos Reds se aperta para assistir à semifinal no Villa Park.
"Liverpool for the Cup": a torcida dos Reds se aperta para assistir à semifinal no Villa Park.

Contra o Liverpool pesava ainda o cansaço: apenas três dias antes o time havia jogado em Roterdã, Holanda, contra os alemães-ocidentais do Colônia pelo jogo-desempate das quartas de final da Copa dos Campeões. Após um duplo 0 a 0 nas partidas de ida e volta, o terceiro jogo terminou 2 a 2 após tempo normal e prorrogação, sendo decidido – em favor do Liverpool – apenas na moedinha do sorteio. Mas Bill Shankly logo arranjou um jeito de motivar os jogadores ao ouvir dizer que o Chelsea já preparara seu programa para a final.


‘Garotos”, disse o técnico no vestiário antes da partida, “eles acham que nem vale a pena vocês entrarem em campo. Eles acham de verdade que já estão em Wembley. Vão lá e mostrem a eles!”. Se hoje parece uma estratégia até manjada, equivalente ao “eles já até estão vendendo faixa de campeão” que ainda atualmente se costuma recorrer, o fato é que na época fazia muito efeito: o Liverpool entrou mordido em campo, disputando cada bola. Mas faltava definir o jogo para evitar um replay que congestionaria ainda mais o calendário.


Foi o Chelsea, porém, o primeiro a mandar a bola às redes, ainda no primeiro tempo, em cabeçada de John Mortimore após escanteio batido por Bobby Tambling. Mas o árbitro D. W. Smith invalidou o gol alegando falta do jogador dos Blues no goleiro Lawrence. Na etapa final, a vitória do Liverpool começaria a ser decidida aos 17 minutos, quando Thompson recebeu de St. John na ponta esquerda, deu um drible de corpo no lateral Marvin Hinton e arrancou livre para a área, finalizando com um chutaço que venceu o goleiro Peter Bonetti.


Com o controle mental do jogo, além da vantagem no placar, o Liverpool ampliaria o marcador aos 33 minutos: St. John desceu pela ponta direita e, ao entrar na área, levou um carrinho por trás de Ron Harris. A cobrança do pênalti seria feita por Milne, batedor oficial do time. Mas o meia não se sentiu confiante para cobrar e passou a bola para Stevenson, que até chegou a escorregar na hora da cobrança, mas seu chute ganhou altura e acabou entrando perto do ângulo de Bonetti, decretando o 2 a 0 e selando a classificação dos Reds.


O segundo gol foi ainda a senha para uma invasão de campo dos torcedores do Liverpool, que acabou inicialmente contida, mas voltou a acontecer após o apito final. Enquanto isso, o lado da torcida dos Reds nas arquibancadas entoava a plenos pulmões: “Ee-Ay-Addio, o Chelsea está fora da copa!”. Era uma adaptação do refrão de uma tradicional cantiga de roda inglesa chamada “The Farmer’s In His Den” que não apenas marcaria aquela campanha como se popularizaria em estádios de futebol pelo país desde então, em novas versões.


A defesa dos Reds contém um ataque do Chelsea com George Graham (8): solidez até a final.
A defesa dos Reds contém um ataque do Chelsea com George Graham (8): solidez até a final.

Em sua crônica do jogo assinada por Albert Barham, o Guardian fez elogios gerais à atuação do Liverpool, mas fez questão de destacar três jogadores: Gordon Milne (“tão em forma, tão rápido, tão incansável”), Peter Thompson (“magnífico em seu controle de bola e na facilidade de suas arrancadas”) e Ian St. John (“mesmo que apenas por sua persistência implacável”). Thompson, aliás, se redimia: três anos antes, atuando pelo Preston, ele havia sido carrasco ao marcar o gol que eliminou os Reds na FA Cup. Agora se tornava herói.


O ÚLTIMO DEGRAU PARA A GLÓRIA


O adversário dos Reds na final seria o Leeds, a sensação daquela temporada. Clube de histórico modesto até ali, sem nenhuma grande conquista e com passagens discretas pela primeira divisão, tinha cartel na FA Cup mais humilde até do que o Liverpool: o mais longe que chegara havia sido as quartas de final, uma vez, em 1950. Mas a chegada do técnico Don Revie, em 1961, iniciou uma revolução: campeão da segunda divisão em 1964, logo na campanha seguinte (a do retorno à elite) colocou-se como sério candidato à dobradinha.


Na liga, o Leeds terminaria com a mesma pontuação do Manchester United, mas perderia o título pelo critério de desempate do goal average (divisão dos gols marcados pelos sofridos). Na FA Cup, porém, o time de Yorkshire levou a melhor quando os dois mediram forças nas semifinais. Foi uma definição tão dramática quanto a da liga, diga-se: o primeiro jogo, em Sheffield, terminou 0 a 0, e o replay no City Ground (Nottingham) se encaminhava para isso até o meia escocês Billy Bremner marcar o gol da classificação no último minuto.


Bremner também se tornaria símbolo de um outro lado daquele Leeds extremamente competitivo. Desde os tempos da segunda divisão, o time de Don Revie angariara uma reputação não muito abonadora de time violento, indisciplinado e cínico, lançando mão de recursos que não exatamente primavam pela esportividade. Os jogos contra o Chelsea em Stamford Bridge e contra o Everton no Goodison Park pela liga descambaram para pancadaria da grossa, levando Revie a sair em defesa de seu time, falando em perseguição.


Mas o Leeds também tinha, é claro, suas qualidades. E uma das principais era a solidez defensiva: além de contarem com a segunda defesa menos vazada do campeonato da primeira divisão, os Whites haviam passado por quatro das cinco fases da copa sem levar gols (foram apenas dois sofridos em sete partidas no caminho até a final). Todas essas características reunidas pintavam um quadro do Leeds como um time muito difícil e chato de ser enfrentado, demandando muita paciência e sangue frio de seus oponentes.


Liverpool no ataque na decisão: boa chance com Roger Hunt.
Liverpool no ataque na decisão: boa chance com Roger Hunt.

O Liverpool, por sua vez, havia terminado o campeonato apenas em sétimo, atrás de Manchester United, Leeds, Chelsea, Everton, Nottingham Forest e Tottenham. E teria para a decisão da FA Cup um desfalque importante a lamentar. Na derrota de 4 a 0 para o Chelsea pela liga em Stamford Bridge, em 16 de abril, três jogadores deixaram o campo lesionados: Milne, Callaghan e St. John. Os dois últimos conseguiram se recuperar a tempo, mas Milne, que saíra do jogo com uma torção no joelho aos 23 minutos, ficaria mesmo de fora.


Seu substituto seria o versátil Geoff Strong, capaz de fazer qualquer função no meio-campo ou no ataque pela faixa central e que havia sido contratado do Arsenal em novembro de 1964, apenas dois meses antes da entrada do Liverpool na FA Cup. Assim, seria apenas a segunda vez naquela campanha que a escalação não teria os mesmos 11 nomes. Para Milne, entretanto, a tristeza era enorme, uma vez que, naquele tempo, somente os jogadores que atuavam na decisão do torneio recebiam a medalha de campeão em caso de título.


Quem teria presença certa em Wembley era a ruidosa torcida dos Reds, que chamaria a atenção ao abafar até a banda marcial que sempre se apresentava no gramado antes das finais. "Ee-aye-addio, we've come to see the queen" (“viemos ver a rainha”) era a nova versão do cântico que se popularizara. E ao verem que a rainha Elizabeth II, presente nas tribunas do colossal estádio, vestia um traje vermelho, cor do clube, os torcedores mudaram de novo o refrão: "Ee-aye-addio, the queen's wearing red" (“a rainha veste vermelho”).


Um outro ruido, nada elogiável, também partiu da torcida dos Liverpool assim que os times entraram em campo, com o Leeds trazendo o ponta-esquerda sul-africano Albert Johanneson, o primeiro jogador negro a atuar numa decisão da competição em Wembley. “Quando entramos”, lembrou o jogador muitos anos mais tarde, “tudo que podia ouvir era uma cacofonia de barulhos tipo zulu vindo das arquibancadas. Foi horrível, mal podia ouvir meus pensamentos por causa daqueles gritos. Queria correr de volta para o túnel”.


A DECISÃO


O Leeds jogava num 4-3-3 bem semelhante ao do Liverpool, tendo no irlandês Johnny Giles um ponta-direita não-ortodoxo, com liberdade para circular por todo o campo e pensar o jogo. No gol havia o galês Gary Sprake. Nas laterais, Paul Madeley e o escocês Willie Bell. No miolo, o quarteto que fizera a fama do jogo duro da equipe: os zagueiros Jack Charlton e Norman Hunter e os médios escoceses Bobby Collins (capitão do time) e Billy Bremner. Na frente, além de Johanneson, havia a dupla de área formada por Jim Storrie e Alan Peacock.


Num embate entre dois times de defesas vigorosas, o jogo se apresentou muito travado durante o tempo normal. Não à toa, o lance mais comentado daqueles 90 minutos seria o choque entre Gerry Byrne e Bobby Collins logo aos cinco minutos, que provocou a fratura da clavícula do lateral-esquerdo do Liverpool. Sem saber da gravidade da lesão, contudo, Byrne se recusou a deixar o campo para não dar ao adversário a vantagem de atuar com um homem a mais – naquele tempo, as substituições não eram permitidas – e jogou até o fim.



Na prorrogação o jogo se tornaria menos estudado, até porque o Liverpool saiu na frente logo aos dois minutos, com Byrne, mesmo lesionado, tendo participação crucial: o lateral recebeu passe de Stevenson, foi à linha de fundo e cruzou para Hunt cabecear se abaixando e mandar a bola às redes. Mas o Leeds não se entregou e empatou ainda na primeira etapa do tempo extra, aos dez minutos: Hunter alçou para a área, Jack Charlton ganhou da defesa dos Reds pelo alto, e a bola sobrou para Bremner emendar um belo chute de primeira.

 

Na etapa final, porém, o Liverpool retomaria a vantagem, que não deixaria mais escapar: Tommy Smith passou a Callaghan no lado direito da área, e o camisa 7 bateu dois adversários na corrida antes de cruzar para St. John, que superou Johnny Giles pelo alto e cabeceou firme, sem chances para Sprake. Era o gol que decretava a vitória dos Reds por 2 a 1 e a conquista inédita da FA Cup, superando o bom time do Leeds, a chuva que caiu sem parar e o cansaço da prorrogação (a primeira numa final da competição desde 1947).


“Pensar que um time como o Liverpool nunca havia conquistado a FA Cup era inacreditável, muitos rezaram para que isso acontecesse ao longo de todos aqueles anos, mas nunca havia se passado. Então quando batemos o Leeds, a emoção foi inesquecível”, relembraria Bill Shankly tempos depois. Mesmo exaustos, os jogadores subiram as escadarias até a tribuna de Wembley, onde a rainha Elizabeth II entregaria a taça ao capitão Ron Yeats. Nas arquibancadas do lendário estádio, a explosão de alegria da torcida dos Reds tomava conta.


No retorno a Liverpool, o time foi recebido por cerca de 250 mil pessoas no tradicional desfile em carro aberto pela cidade, e dias depois a taça foi exibida aos torcedores numa volta olímpica pelo gramado de Anfield antes da vitória de 3 a 1 sobre a Inter de Milão pelas semifinais da Copa dos Campeões (os Reds acabariam eliminados de maneira controversa com uma derrota por 3 a 0 no San Siro, uma semana depois). De lá para cá, o Liverpool voltaria 12 vezes à final da FA Cup, levando a taça em sete e perdendo em outras cinco.


Bella e Bertie, no entanto, contrariaram a velha piada e não “voaram para bem longe” após a conquista da copa pelos Reds. Mas, curiosamente, bem na hora em que o jogo começou em Wembley, enquanto as ruas de Liverpool estavam desertas e as pessoas acompanhavam a partida pela televisão em suas casas, os Liver Birds foram baixados de suas torres para a limpeza das estátuas. De certa forma, a brincadeira acabou tendo um fundo de verdade.


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