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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

O adeus a Jack Charlton, ídolo do Leeds e herói de duas nações


Campeão do mundo em 1966, Jack dá a volta olímpica exibindo a Jules Rimet.

Na história do futebol mundial, a lista de personagens que poderiam ser elencados como figuras muito populares em duas nações distintas não é tão grande. Mas certamente inclui o nome de Jack Charlton, falecido na sexta-feira aos 85 anos, vitimado por um linfoma. Beque viril que formou com o elegante Bobby Moore a dupla de zaga titular da Inglaterra campeã mundial em 1966 (num time em que incluía seu irmão mais novo, Bobby) e que também levantou inúmeros títulos na era de ouro do Leeds (único clube em que atuou na carreira), Charlton também se destacou como técnico ao colocar a Irlanda no mapa da bola, levando-a à Eurocopa de 1988 e às Copas de 1990 e 1994, nas quais obteve vitórias surpreendentes.


O DOM DE BERÇO


Nascido na cidade nortista de Ashington em 8 de maio de 1935, John Charlton (apelidado “Jack” na infância) tinha o futebol no sangue. Não pelo lado paterno – seu pai, Bob, trabalhava nas minas de carvão e não tinha interesse pelo esporte – e sim pelo materno. Sua mãe, Cissie, jogava futebol com os filhos e mais tarde treinaria o time de um colégio local, além de pertencer a uma família de futebolistas: seus quatro irmãos foram jogadores profissionais. E Jackie Millburn, atacante histórico do Newcastle e da seleção inglesa da Copa de 1950, era seu primo.


Mais velho dos quatro filhos de Bob e Cissie, Jack foi convidado aos 15 anos para treinar no Leeds, mas recusou, preferindo inicialmente seguir o caminho do pai nas minas. Pouco tempo depois, desgostoso com o trabalho, chegou a se candidatar ao posto de policial, mas novamente o futebol cruzou seu caminho, na forma de um novo teste nos Whites, agora aceito. Aos 17 anos, ele assinaria seu primeiro contrato como profissional com o clube de Elland Road – então na segunda divisão inglesa – e estrearia na equipe titular em abril de 1953.


Começaria ali uma história que duraria mais de 20 anos. Sua chegada aos titulares, aliás, viria com a passagem de outro ídolo dos Whites, o gigantesco galês John Charles, da zaga para o comando do ataque, posição na qual se consagraria. Charlton, lateral-esquerdo na base, construiria sua própria história como beque central vigoroso, um xerife que impunha respeito aos atacantes adversários. Mas naqueles primeiros anos, sua afirmação ainda levaria certo tempo: a passagem pelo serviço militar e seu gosto pela noite tiraram-no do time em alguns momentos.


Família de jogadores: Jack (o mais alto) e seu irmão Bobby, outra lenda do futebol inglês.

Com o casamento com Pat Kemp, em janeiro de 1958, Jack sossegaria e inclusive começaria a frequentar os cursos para formação de treinadores oferecidos pela Football Association inglesa na academia de Lilleshaw. Mas, mesmo com sua dedicação redobrada, o Leeds não engrenava. O clube – que conquistara o acesso à primeira divisão em 1956, mas após brigar para não cair por quatro anos acabaria novamente rebaixado em 1960 – não demonstrava ter força nem ambição para brigar por coisas maiores. Vivia numa espécie de limbo prolongado.


O ápice se deu na temporada 1960-61, quando, sob o comando de Jack Taylor, o clube escapou por pouco de cair para a terceira divisão. Nem mesmo a chegada do novo técnico – um certo Don Revie – na campanha seguinte, parecia melhorar as coisas para Charlton, considerado um jogador fora dos planos. Desmotivado, o zagueiro esteve perto de deixar o clube. O Liverpool de Bill Shankly, porém, não chegou ao valor pedido pelo Leeds. E Matt Busby, de última hora, desistiu de trazê-lo para o Manchester United no qual seu irmão Bobby já era um astro.


O DESTAQUE TARDIO


Foi quando o Leeds começou a entrar nos eixos. Uma vassourada de Revie no time e no elenco levou à promoção de uma legião de jovens valores da base (como o lateral-direito Paul Reaney, o zagueiro Norman Hunter, o meia Billy Bremner, o ponteiro Peter Lorimer e o polivalente Paul Madeley), além da contratação de outros nomes promissores, como o armador irlandês Johnny Giles. Nome mais experiente, do alto de seus 28 anos, Charlton era agora o líder da defesa. E os Whites, depois de baterem na trave pelo acesso em 1963, subiriam em 1964.


O impacto foi imediato. Os recém-promovidos ficaram a milímetros de uma histórica dobradinha: terminaram em segundo na liga, atrás do Manchester United de Matt Busby – e Bobby Charlton – apenas no critério do “goal average” e foram batidos apenas na prorrogação na decisão da FA Cup pelo Liverpool de Bill Shankly. Mas o que trouxe manchetes ao clube acabou sendo seu estilo de jogo, tido como cínico e violento. A reputação de “time sujo” tinha em Jack Charlton um de seus símbolos. Mas o zagueiro, anos mais tarde, se declararia “desconfortável” com ela.


Outros tempos: fumando durante um treino do Leeds.

Os Whites – que nunca haviam levantado um título em sua história – perderiam a chance de vencer a liga no último jogo, um empate por 3 a 3 em casa diante do Birmingham, no qual Jack anotaria o terceiro gol. E naquela temporada nasceria uma intensa rivalidade com o Manchester United, em parte por aquela campanha, na qual os clubes disputariam o título palmo a palmo, mas que também se estenderia à FA Cup, com o time de Yorkshire batendo os mancunianos na semifinal por 1 a 0, no replay disputado no City Ground, em Nottingham.


Dentro de pouco tempo, o Leeds também começaria a explorar a seara do futebol europeu, com grandes feitos especialmente na Copa das Cidades com Feiras. O time chegaria à semifinal em 1965-66, caindo diante do Zaragoza após eliminar equipes como Torino, Valencia e Újpest. Na temporada seguinte, subiria mais um degrau, perdendo a decisão para o Dinamo Zagreb, depois de deixar pelo caminho outra vez o Valencia, além do Bologna e dos escoceses do Kilmarnock. Na terceira tentativa, em 1967-68, enfim a taça tomaria o rumo de Elland Road.


Depois de arrasar o Spora Luxemburgo com um 16 a 0 no placar agregado, o time despacharia o Partizan (vice-campeão da Copa dos Campeões dois anos antes) e uma trinca de escoceses – Hibernian, Rangers e Dundee FC – antes de superar o forte esquadrão do Ferencváros na decisão com uma vitória em casa (1 a 0) e um empate sem gols em Budapeste. No mesmo ano, meses antes, os Whites também haviam conquistado a Copa da Liga, derrotando o Arsenal por 1 a 0 em Wembley, no que seria a primeira taça levantada pelo Leeds.


O XERIFE CAMPEÃO DO MUNDO


Naquele momento, Jack Charlton já era um nome para lá de consagrado. Um campeão do mundo com a seleção inglesa, para a qual recebera sua primeira convocação às vésperas de completar 30 anos. Estrearia num empate em 2 a 2 com a Escócia em Wembley, fazendo a assistência para seu irmão Bobby marcar o primeiro gol inglês. Pelos próximos 26 jogos dos Three Lions o zagueiro do Leeds ficaria de fora de apenas um, marcando três gols na sequência: contra a Finlândia em Helsinque, a Dinamarca em Copenhague e o País de Gales em Wembley.


Naquele caminho para a Copa do Mundo de 1966, disputado em solo inglês, Charlton formaria a lendária dupla de área com Bobby Moore, do West Ham. A combinação era perfeita, já que os estilos eram complementares: o jogo sólido e vigoroso do beque do Leeds cobria a saída de jogo de Moore, um defensor que primava pela técnica refinada. Com os dois atuando à frente de um também excepcional Gordon Banks na meta, a Inglaterra passaria sem ser vazada nos quatro primeiros jogos do Mundial, contra Uruguai, México, França e Argentina.


O primeiro gol sofrido viria apenas na semifinal contra Portugal, num lance envolvendo Charlton, que preferiu cortar com a mão um cruzamento destinado ao centroavante grandalhão Torres. Eusébio converteu a penalidade e descontou para os portugueses, quando os ingleses já venciam por 2 a 0. Na final contra a Alemanha Ocidental, outra vez o zagueiro teria participação em um lance em que a meta da Inglaterra seria vazada, ao ter marcada contra ele uma falta discutível em disputa de bola pelo alto com Uwe Seeler, que resultou no segundo tento alemão.


Após o empate no tempo normal, os ingleses marcariam mais duas vezes com Geoff Hurst na prorrogação (uma delas, no lance eternamente lembrado em que a bola não teria cruzado a linha) e levantariam a Taça Jules Rimet. Ao apito final, Jack logo procurou o irmão Bobby, companheiro de seleção e um dos grandes destaques daquela campanha vitoriosa. No gramado de Wembley, diante da torcida local em êxtase, os dois se abraçaram, e então o zagueirão caiu de joelhos, fisicamente esgotado. Uma imagem marcante da conquista.


Com a Jules Rimet: campeão em sua única Copa como titular.

Jack Charlton atuaria mais 12 vezes pela seleção no ciclo seguinte, até a Copa do Mundo de 1970. No caminho, marcou quatro gols, entre eles o do empate em 1 a 1 com a Romênia e o da vitória por 1 a 0 sobre Portugal, ambos em amistosos disputados em Wembley. Também no estádio, ele balançaria as redes em uma partida famosa, a vitória por 3 a 2 da rival Escócia sobre os campeões mundiais em abril de 1967. Naquele jogo, Charlton continuaria em campo mesmo com dois ossos do pé fraturados. Deslocado para o ataque, marcaria o primeiro tento inglês.


O zagueiro seria convocado para a Eurocopa de 1968, na Itália, mas não entraria em campo. Já para o Mundial do México, dali a dois anos, ele seguiria na reserva, com Brian Labone, do Everton, ocupando seu antigo posto ao lado de Bobby Moore. Mas ele ainda atuaria uma vez, na vitória sobre a Tchecoslováquia por 1 a 0 pela última rodada da fase de grupos. Seria ali sua despedida da seleção, comunicada de forma hesitante a Alf Ramsey no voo de volta, após a eliminação nas quartas de final diante da Alemanha Ocidental, mas aceita pelo treinador.


FAZENDO HISTÓRIA EM ELLAND ROAD


Na mesma época, o Leeds já se tornara indiscutivelmente uma potência do futebol inglês. Pela primeira vez conquistaria o título da liga em 1969, terminando com 67 pontos ganhos – novo recorde da primeira divisão – e só duas derrotas em 42 jogos. Na temporada seguinte, porém, o sonho da tríplice coroa (liga, FA Cup e Copa dos Campeões) acabou em decepção completa: o time perdeu a liga para o Everton, a copa nacional para o Chelsea – com Charlton marcando um gol no primeiro jogo da decisão – e caiu na semifinal europeia para o Celtic.


Já na temporada 1970-71, novamente o time acabaria na segunda colocação no campeonato, superado pelo Arsenal na reta final. Mas se consolaria vencendo mais uma vez a Copa das Cidades com Feiras, eliminando o Liverpool de Bill Shankly nas semifinais e levantando o título ao superar a Juventus nos gols fora de casa, após um 2 a 2 em Turim e um 0 a 0 em Elland Road. Como vencedor da última edição do torneio, logo substituído pela Copa da Uefa, o clube disputou com o Barcelona a posse permanente do troféu, mas foi batido por 2 a 1 no Camp Nou.


Em sua última temporada como titular incontestável do Leeds, 1971/72, Jack Charlton levantaria o título que faltava em sua carreira no futebol inglês: a FA Cup, ao derrotar o Arsenal na final em Wembley por 1 a 0. Na liga, porém, os Whites terminariam pelo terceiro ano consecutivo com o vice-campeonato, agora atrás do Derby County de Brian Clough. Passado à reserva na campanha seguinte, ele ainda participaria de alguns jogos importantes, mas após se lesionar na semifinal da FA Cup, contra o Wolverhampton, decidiria pendurar as chuteiras aos 38 anos.


Levantando a FA Cup em 1972: última taça como jogador.

Charlton terminou sua carreira como o jogador que mais vezes defendeu o Leeds, somando um impressionante total de 773 partidas oficiais por todas as competições ao longo de 20 anos. A marca seria igualada posteriormente por Billy Bremner. Como atleta dos Whites, o defensor também seria eleito o Jogador do Ano pela Associação de Cronistas Esportivos ingleses na temporada 1966/67, um ano depois de seu irmão Bobby receber a mesma honraria. Em 2006, também seria incluído no time histórico do Leeds numa eleição entre torcedores.


Falante, articulado e grande contador de histórias, Jack Charlton logo passou a ser procurado para atuar como comentarista de TV, participando de debates esportivos e da transmissão de partidas – como na Copa do Mundo de 1974 pela ITV. No fim dos anos 1970, quando o futebol inglês discutia punições mais rigorosas num momento em que crescia a quantidade de entradas violentas, nas quais os jogadores atingiam os adversários sem visar à bola, o ex-zagueiro defendeu de modo veemente os colegas de posição em entrevista para a BBC.


“Acredito que o futebol é um esporte físico no qual os jogadores fortes têm seu papel a cumprir, assim como os habilidosos. Estes só se tornarão bons de verdade se o jogo for dificultado para eles. Facilitar as coisas para os jogadores habilidosos? Sem chance. O jogo perderia inteiramente o seu apelo”, declarou, causando polêmica, mas fazendo jus ao seu jeito franco e direto, sem meias palavras, que também havia marcado sua carreira como jogador, como no famoso caso do “livrinho negro” de adversários ao qual ele se referiu em entrevista de 1970.


Na ocasião, Charlton declarou ter anotados os nomes dos oponentes que haviam entrado duro sobre ele em alguma partida para que não se esquecesse de tirar a revanche assim que tivesse a oportunidade. O caso chegou à Football Association, que abriu inquérito, mas acabou absolvendo o jogador após ele afirmar que havia sido mal interpretado pela imprensa. Segundo ele próprio, o que ele tinha era uma lista mental de adversários nos quais pretendia entrar “duro, mas sem deslealdade” como o troco por alguma agressão prévia sofrida por ele próprio.


A IMPORTANTE CARREIRA COMO TREINADOR


Após se retirar como jogador, Jack Charlton não ficaria muito tempo longe do futebol, aceitando de imediato o posto de técnico do Middiesbrough ainda em maio de 1973. Assumiria o Boro na segunda divisão e, logo em sua primeira temporada, levaria o time à elite conquistando ainda o título da categoria de acesso com uma campanha expressiva, 15 pontos à frente do segundo colocado Luton Town. O bom momento continuou na primeira divisão, com o time alcançando a ponta da tabela na metade da temporada, antes de perder o fôlego.


Jack Charlton (à direita) comemora o acesso do Boro à primeira divisão em 1974.

Numa das disputas mais emboladas pelo título inglês de todos os tempos, o Middlesbrough ainda perseguiria os líderes até quase o fim da temporada, mas acabaria na sétima posição – um ótimo resultado para os padrões do clube – a apenas cinco pontos do campeão Derby County. Naquela equipe, Charlton ajudaria a moldar o estilo de um de seus pilares do meio-campo, um escocês chamado Graeme Souness, transferindo-o da esquerda para o centro do setor, no qual ele se desenvolveria como um jogador combativo, mas muito eficiente também no ataque.


Antes de deixar o cargo, em abril de 1977, Charlton também levantaria com o clube a Copa Anglo-Escocesa de 1976, derrotando o Fulham na decisão, e levaria o Boro às semifinais da Copa da Liga na mesma temporada, na qual chegou a vencer o Manchester City por 1 a 0 em casa no jogo de ida, mas acabou goleado por 4 a 0 na volta em Maine Road. Em seus quase quatro anos de trabalho em Ayresome Park, o treinador alcançaria uma respeitável marca de 88 vitórias em 193 partidas, perfazendo uma média de 45,6% de jogos ganhos.


Charlton também teria trajetória longa e importante no comando do Sheffield Wednesday, para onde iria em novembro de 1977, com os Owls na lanterna da terceira divisão. Implementando um estilo de jogo mais direto, adequado ao baixo nível técnico daquela categoria, ele conseguiria o acesso à segundona ao fim da temporada 1979-80 e ainda chegaria muito perto de um novo acesso, agora à elite, em 1981-82, ficando a apenas um ponto do Norwich, terceiro colocado, que subiu graças à mudança da contagem de pontos por vitória, de dois para três.


Mas seu momento mais lembrado daquela passagem que duraria quase seis anos (até maio de 1983) viria na terceira fase da FA Cup de 1978-79, quando o Wednesday, então na terceirona, enfrentaria o Arsenal – que se sagraria campeão daquela edição – e resistiria não só à partida inicial (empate em 1 a 1 em Hillsborough) como também a outros três replays (empates em 1 a 1 em Highbury e em 2 a 2 e 3 a 3 no campo neutro de Leicester), os dois últimos com prorrogação, caindo apenas no quinto confronto ao perder por 2 a 0 também em Filbert Street.


Após outra passagem pelo Middlesbrough, desta vez rápida, por apenas nove partidas como interino ao fim da temporada 1983-84, ele seguiria para o Newcastle, no qual ficaria pouco mais de um ano, deixando os recém-promovidos Magpies num discreto 14ª lugar na primeira divisão em 1984-85. Mas mereceria crédito por manter sua aposta em um jovem meia problemático da base, comedor compulsivo de chocolates e fast food, chamado Paul Gascoigne, de quem alguns integrantes da comissão técnica preferiam ter se livrado.


“SAINT JACK” DA IRLANDA


Seu trabalho seguinte, o último e o mais longevo como treinador, seria também o que alcançaria um patamar internacional. Em fevereiro de 1986 ele assumiria a seleção da Irlanda, herdando um bom trabalho de renovação na equipe feito durante cinco anos por Eoin Hand, mas que falhou (algumas vezes por pouco) em colocar o país pela primeira vez num grande torneio. Logo em sua coletiva de apresentação, Charlton discutiu com um jornalista e saiu ventando. Mas dentro de pouco tempo seu jeito como pessoa e como treinador seria mais assimilado.


Sua primeira missão eram as Eliminatórias para a Eurocopa de 1988. A Irlanda caíra num grupo embolado, em que a Bélgica – vinda de um quarto lugar na Copa do Mundo do México – parecia de início a favorita, mas que tinha ainda Bulgária e Escócia, duas outras seleções que estiveram naquele Mundial, além da fraca seleção de Luxemburgo, a fiel da balança. Mas a disputa já se mostraria imprevisível de saída, quando os irlandeses arrancaram um empate em 2 a 2 com os belgas em Bruxelas graças a um gol de pênalti de Liam Brady no último minuto.


Logo viriam a vitórias sobre a Escócia em Glasgow (1 a 0) e sobre Luxemburgo nas duas partidas em sequência (2 a 0 fora de casa e 2 a 1 em Dublin). A única derrota, para a Bulgária em Sófia por 2 a 1, foi vingada com um 2 a 0 também em Dublin, no último jogo. Porém, aquele desempenho até ali não havia sido suficiente para confirmar a classificação. Era necessário um pouco provável tropeço da Bulgária em casa diante da já eliminada Escócia. Mas ele veio: a três minutos do fim, um gol de Gary Mackay deu a vitória ao Tartan Army e a vaga na Eurocopa à Irlanda.


Em meio à campanha, a Irlanda de Charlton também colheu uma vitória encorajadora num amistoso em Dublin, em 23 de maio de 1987: 1 a 0 sobre a Seleção Brasileira treinada por Carlos Alberto Silva e que contava com nomes como Ricardo Rocha, Müller e Romário. Um gol de Liam Brady selaria o resultado histórico. Um dos meias mais talentosos da história do futebol irlandês e contando com a experiência de ter atuado no galáctico Calcio italiano defendendo Juventus, Sampdoria e Ascoli, Brady, porém, teria pouco espaço com Charlton.


O estilo de jogo daquele time não combinava com jogadores elegantes e habilidosos na condução de bola, como ele – que acabaria não podendo entrar em campo na Eurocopa de 1988 devido a uma suspensão. As orientações de Charlton eram simples: com a posse, a ordem era a ligação direta para o ataque. Sem ela, a obrigação era pressionar o adversário até recuperar a bola. E então, tome chutão para a frente. Para muitos, não era um futebol bonito de se ver. Mas para os torcedores irlandeses, diante do que aquele time alcançou, pouco importava.


E de fato, a Era Jack Charlton foi o período mais bem-sucedido da Irlanda no futebol internacional. Já a partir da Eurocopa de 1988, quando a equipe entrou como zebra completa e, no entanto, esteve a poucos minutos de passar às semifinais. Primeiro veio a vitória épica diante dos ingleses, com o solitário gol de Ray Houghton logo aos cinco minutos, num resultado que valeu como uma vingança do treinador contra a Football Association, que sequer se dera ao trabalho de responder à sua candidatura como técnico dos Three Lions quando da saída de Don Revie, em 1977.


Os capitães Bryan Robson (Inglaterra) e Frank Stapleton (Irlanda), antes do confronto pela Eurocopa de 1988.

No jogo seguinte, diante da União Soviética, o time surpreendeu ao dominar as ações e abrir a contagem com um belíssimo gol de voleio de Ronnie Whelan no primeiro tempo. Os adversários empatariam na etapa final com Oleg Protasov, mas os irlandeses seriam elogiados pela atuação e agora precisariam de apenas um empate contra a Holanda em Gelsenkirchen na última rodada para selar sua classificação às semifinais. Apesar de criarem ótimas chances até de vencer, acabariam sucumbindo a um gol quase fortuito de Wim Kieft a nove minutos do fim.


Mas a Irlanda não pararia por aí: Jack Charlton também conduziria a seleção à sua primeira Copa do Mundo, em 1990, na Itália. A classificação veio como segunda colocada do Grupo 5 europeu, atrás da Espanha e à frente de Hungria, Irlanda do Norte e Malta. Já no Mundial, as lembranças de 1988 seriam despertadas no sorteio das chaves, que colocou novamente a seleção ao lado de Inglaterra e Holanda, além do Egito. Na estreia, diante dos ingleses, o time saiu atrás com um gol de Gary Lineker, mas empataria com Kevin Sheedy na etapa final.


Mais uma vez, a Irlanda de Charlton se colocava como pedra no sapato da Inglaterra – o que se tornaria rotina a partir da chegada do ex-zagueiro ao comando. Em seus quase dez anos à frente da seleção irlandesa, o treinador enfrentaria a seleção de seu país natal cinco vezes sem nunca perder uma vez sequer: seriam duas vitórias – o confronto da Euro 1988 e um amistoso em Dublin em 1995, interrompido por atos de hooliganismo – e três empates – o duelo pelo Mundial de 1990 e os dois jogos pelas Eliminatórias da Eurocopa de 1992.


Em seguida, a Irlanda pararia em um empate sem gols diante do Egito e, como em 1988, decidiria sua vida outra vez contra a Holanda na última rodada. Só que desta vez riu por último: depois de sair atrás com um gol de Ruud Gullit logo no início, arrancou um empate na marra, com um gol de carrinho de Niall Quinn após falha do goleiro Hans Van Breukelen. O resultado de 1 a 1 deixou as duas seleções iguais em todos os critérios, fazendo com que a bolinha do sorteio decidisse quem ficaria em segundo, atrás dos ingleses. E deu Irlanda.


Nas oitavas, os irlandeses teriam um adversário – a Romênia – bem mais acessível que a forte Alemanha Ocidental, a quem coube aos holandeses enfrentar na mesma etapa. Depois de um novo empate em 0 a 0 no tempo normal e ainda na prorrogação, a decisão nos pênaltis acabou consagrando o goleiro Pat Bonner, que defendeu a cobrança do meia romeno Ion Timofte. Com isso, a estreante em Copas do Mundo chegava às quartas de final da competição – e, de maneira ainda mais surpreendente, sem ter vencido nenhum jogo com bola rolando até ali.


A curiosa trajetória daquele grande exército de Brancaleone formado pelos pupilos de Charlton acabaria justamente ao cruzarem o caminho da anfitriã Itália nas quartas de final. Niall Quinn poderia ter aberto o placar para os irlandeses com uma ótima cabeçada, mas parou no goleiro Walter Zenga. Do outro lado, Pat Bonner não teve como segurar um forte chute de fora da área de Roberto Donadoni. Salvatore “Totò” Schillaci pegou o rebote e tocou para as redes. No retorno a Dublin, meio milhão de irlandeses recepcionaram a delegação com festa.


Na Copa de 1990, agradecendo aos torcedores irlandeses na Itália.

A Irlanda chegaria perto de se classificar novamente para a Eurocopa em 1992, terminando as Eliminatórias de forma invicta, derrotando duas vezes a Turquia (5 a 0 em Dublin e 3 a 1 em Izmir), empatando duas vezes com a Inglaterra (ambas por 1 a 1) e com a Polônia (0 a 0 em Dublin e 3 a 3 em Poznan). Na mesma época, alcançaria a marca de 25 partidas sem ser derrotada em casa, numa sequência iniciada após a derrota para o País de Gales na estreia de Charlton, em março de 1986, e curiosamente encerrada pelo mesmo adversário, em fevereiro de 1992.


Se a vaga no campeonato europeu na Suécia não veio, a compensação viria nas Eliminatórias para o Mundial de 1994, nos Estados Unidos. A extensa etapa de qualificação (12 partidas) começou muito bem, com vitórias em ambos os jogos contra as mais fracas Letônia, Lituânia e Albânia, um categórico 3 a 0 na Irlanda do Norte em Dublin, além de empates nos dois confrontos com a campeã europeia Dinamarca e também diante da Espanha em Sevilha. No penúltimo jogo, porém, uma derrota por 3 a 1 para os espanhóis em Dublin pôs a classificação em xeque.


Seria necessário um empate diante da Irlanda do Norte em Belfast num jogo considerado de alta tensão devido ao acirramento dos conflitos étnico-nacionalistas na ilha. A partida, marcada por troca de ofensas e provocações até entre os bancos de reservas, terminou em 1 a 1, com Alan McLoughlin igualando a contagem para a equipe de Jack Charlton depois que Jimmy Quinn abriu o placar para os donos da casa. De passaporte carimbado, a Irlanda ainda bateu fortes oponentes nos amistosos: fez 1 a 0 na Holanda em Tilburg e 2 a 0 na Alemanha em Hannover.


Assim, chegou ao Mundial novamente preparada para manter a tradição de aprontar em seu jogo de estreia. O adversário agora era a Itália. E a revanche da Copa anterior foi obtida com sucesso graças a um gol de Ray Houghton (o mesmo jogador que decretara a vitória sobre os ingleses na Eurocopa de 1988). A Irlanda perderia o jogo seguinte para o México por 2 a 1 e empataria sem gols com a Noruega na última partida, mas ficaria em segundo pelo número de gols marcados em um grupo no qual as quatro seleções acabariam igualadas em pontos.


Um novo confronto com a Holanda era o que reservavam as oitavas de final. Mas dessa vez mal foi possível brigar pelo resultado: a Laranja abriu o placar aos 11 minutos com Dennis Bergkamp, dominou o jogo e ainda contou com uma falha gritante de Bonner num chute despretensioso de Wim Jonk para vencer por 2 a 0. A derrota marcaria ainda a despedida de grande parte daquela geração de jogadores das grandes competições internacionais de seleções, uma vez que a Irlanda também não se classificaria para a Eurocopa de 1996.


A campanha no Grupo 6, que contava também com Portugal, Áustria, Irlanda do Norte, Letônia e Liechtenstein, foi bastante irregular e não evitou que a seleção se colocasse como uma das duas piores segundas colocadas daquela etapa de qualificação. Com isso, seria preciso disputar a vaga restante no torneio em um playoff em partida única, marcada para Anfield. E o adversário seria de novo a Holanda. Dois gols de Patrick Kluivert decretaram a classificação da Laranja. E, pouco tempo depois, também a saída de Jack Charlton do comando da seleção irlandesa.


Aos 60 anos, o agora ex-jogador e ex-treinador poderia curtir sua aposentadoria dedicando-se ao seu hobby favorito, a pescaria. Entre as muitas homenagens que recebeu em vida (como a inclusão no Hall da Fama do futebol inglês, em 2005), poucas foram mais simbólicas do que a cidadania honorária de Dublin, concedida pela prefeitura local: era o primeiro inglês em 140 anos a receber a honraria. Sofrendo de demência e com um linfoma descoberto há um ano, Jack teve morte tranquila em casa, em Northumberland, ao lado de sua família.

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