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  • Foto do escritorEmmanuel do Valle

De novo vencedor: Há 50 anos, Arsenal vencia Copa das Feiras e punha fim a jejum em grande estilo


Desfile de gala: o capitão Frank McLintock exibe a Copa das Feiras à torcida em Highbury.

Encerrar um jejum de 17 anos sem conquistas é ótimo. Fazê-lo em um torneio internacional superando dois respeitáveis esquadrões europeus – o Ajax de Johan Cruyff e o Anderlecht de Paul Van Himst – em sequência na reta final, como o Arsenal realizou para levantar a Copa das Feiras de 1970, torna o sabor ainda mais especial. O título que completou 50 anos nesta terça-feira ainda abriu caminho para a histórica dobradinha nacional (liga e FA Cup) feita no ano seguinte, coroando uma geração que marcou época em Highbury.


UMA ESCOLHA INCOMUM


Clube mais vencedor do futebol inglês nos anos 1930, quando levantou cinco títulos da liga e dois da FA Cup, o Arsenal ainda manteve um bom ritmo de conquistas nas primeiras temporadas após o fim da Segunda Guerra Mundial: faturou os campeonatos de 1948 e 1953, além da copa em 1950. Nos anos seguintes, no entanto, aos poucos o clube foi perdendo competitividade, cada vez mais se aninhando no meio da tabela.


Após a morte de Tom Whittaker – treinador nos três títulos do pós-Guerra – em outubro de 1956, o clube teve outros três comandantes que não conseguiram levar os Gunners a novas conquistas. O interino efetivado Jack Crayston ficou até meados de 1958, substituído pelo ex-goleiro George Swindin – que em sua primeira temporada conduziu o time ao terceiro posto na liga, mas o bom desempenho não se repetiu nas três campanhas seguintes.


No lugar de Swindin, em maio de 1962, entrou Billy Wright, nome respeitado como capitão do Wolverhampton e da seleção inglesa por mais de uma década, mas que não obteve como técnico o mesmo êxito de sua carreira como atleta. Wright saiu em junho de 1966, a poucas semanas do início da Copa do Mundo na Inglaterra. E mesmo com a iminência do grande evento, a nomeação de seu substituto chamou a atenção da imprensa.


Bertram “Bertie” Mee estava há seis anos no Arsenal trabalhando como fisioterapeuta, profissão que aprendera no Royal Army Medical Corps depois que sua carreira de jogador fora encerrada precocemente por uma lesão. Não tinha nenhuma experiência como treinador, nem pretensões de ascender ao cargo, conforme declarou. Mas sua maneira direta, sincera e rígida no tratamento com os jogadores era bastante apreciada.


Como não era exatamente um perito em táticas, Mee recrutou como seu assistente o jovem Dave Sexton, que pouco mais de um ano depois, em outubro de 1967, deixaria Highbury para assumir o comando do time principal do Chelsea. Para seu lugar foi promovido outro jovem, Don Howe, ex-lateral do West Bromwich e da seleção que vinha cuidando do time de juvenis dos Gunners após pendurar as chuteiras no próprio clube.


Bertie Mee com o troféu da Copa das Feiras.

Se Billy Wright havia – no jargão do futebol – “perdido o vestiário”, Bertie Mee sabia exatamente o que fazer para reconquistá-lo, já que conhecia bem todos aqueles jogadores do dia a dia como fisioterapeuta. De modo que, ao ser apontado, livrou-se logo de alguns medalhões. Entre eles George Eastham, meia talentoso, porém dispersivo, que foi para o Stoke. E Joe Baker, goleador baixinho e veloz, negociado com o Nottingham Forest.


Mee também agiu rápido ao trazer novos jogadores: trouxe do Chelsea o meia-atacante George Graham em troca de Tommy Baldwin mais £50 mil. E, pelo mesmo valor (então recorde para um defensor), contratou o lateral-esquerdo Bob McNab, do Huddersfield. Enquanto isso, escudado por Don Howe, o novo treinador também começou a promover vários jovens de um celeiro cada vez mais prolífico de bons jogadores.


E o primeiro fruto do trabalho apareceu na reta final da segunda temporada, quando o Arsenal voltou a Wembley após 16 anos. Derrotado pelo Newcastle na decisão da FA Cup de 1952, o clube chegou à final da Copa da Liga contra o Leeds em março de 1968, mas também acabou vencido: os ascendentes Whites, comandados por Don Revie, levaram a melhor por um magro 1 a 0 e levantaram o primeiro caneco de sua história.



O Arsenal voltou à final do torneio no ano seguinte como favorito absoluto diante do modesto Swindon Town, da terceira divisão. Mas, com oito jogadores gripados, o time atolaria na lama de Wembley numa das maiores zebras da história do futebol inglês: os Robins abriram o placar no primeiro tempo, os Gunners empataram aos 41 minutos da etapa final, mas o time interiorano marcou mais duas vezes na prorrogação.


Os torcedores do Arsenal que viam o copo meio vazio consideraram aquele o fundo do poço de um longo período tenebroso. Uma humilhação sem precedentes a provar que aquela equipe se acostumara com fracassos. Já os que viam o copo meio cheio entenderam que o time aos poucos vinha chegando, que Bertie Mee e Don Howe sabiam das coisas, que faltava apenas um pouco de sorte e paciência e logo as conquistas retornariam.


Os jogadores do Arsenal preferiram pensar da segunda forma, e não sem uma pitada de raiva: “Aquele nunca vai ser o melhor dia da minha vida, mas vou morrer dizendo às pessoas que o que conquistamos nos anos seguintes a aquela derrota na Copa da Liga, devemos ao Swindon. Parte do nosso grupo de jogadores que foram destratados pela imprensa de Londres usou aquilo como uma motivação”, lembrou o goleiro Bob Wilson.


Até porque os Gunners haviam cumprido campanha bastante consistente na liga em 1968-69, terminando na quarta colocação com 22 vitórias e apenas oito derrotas em 42 jogos. E a defesa demonstrara uma resiliência particularmente notável, sofrendo apenas 27 gols, de longe uma das menos vazadas da primeira divisão. O Arsenal vivia tendência de alta. Não era hora de rasgar tudo e simplesmente recomeçar do zero.


Aquela quarta colocação – a melhor posição do clube na liga em dez anos – valeu vaga na edição 1969-70 da Copa das Cidades com Feiras (ou só Copa das Feiras), torneio que serviu de antecessor extraoficial da Copa da Uefa, e que já havia sido levantado pelo Leeds em 1968 e pelo Newcastle no ano seguinte. O Arsenal havia disputado a competição em 1963-64 e caído logo na segunda fase, diante dos belgas do RFC Liège.


É bem verdade que a campanha do Arsenal na liga em 1969-70 esteve longe de ser brilhante. O time estreou com derrota em casa para o futuro campeão Everton por 1 a 0 e praticamente não saiu do meio de tabela durante toda a temporada, terminando num bem mediano 12º lugar, jogando para baixo a recente curva ascendente. Mas a nova empreitada europeia compensaria plenamente a concentração de esforços.


O TIME-BASE


A campanha teria início diante do Glentoran, da vizinha Irlanda do Norte, batido por 3 a 0 no jogo de ida em Highbury com uma escalação muito próxima daquela que se tornaria sua equipe-base no restante da campanha. A começar pelo goleiro Bob Wilson, um filho de escoceses nascido em Chesterfield, mas que chegaria a defender o Tartan Army e, após o fim da carreira, se tornaria apresentador e comentarista da BBC.


A linha de quatro defensores tinha o lateral-direito Peter Storey (que também podia atuar como volante), jogador viril, muitas vezes violento, um típico “hard man” daqueles tempos; os zagueiros Frank McLintock – capitão e jogador mais experiente, vindo de um bom time do Leicester – e o versátil Peter Simpson; e o lateral-esquerdo Bob McNab, vindo do Huddersfield e sempre presente no apoio ao ataque.


Na faixa central do meio-campo, Jon Sammels era presença certa há várias temporadas com seus passes precisos, enquanto David Court jogaria a primeira metade da campanha, perdendo lugar no time para o dinâmico Eddie Kelly. Na ponta direita, George Armstrong era um dos nomes mais regulares daquela equipe, de movimentação intensa e perito nos cruzamentos. Foi eleito o melhor jogador do clube naquele ano de 1970.


Pelo lado esquerdo, o ponteiro Jimmy Robertson chegou a participar da metade inicial da campanha, antes de ser vendido ao rival Tottenham. Para seu lugar seria deslocado o escocês George Graham, outro nome experiente, com passagens por Aston Villa e Chelsea. Jogador inteligente, era mais um meia-atacante por dentro do que um ponta, ditando o ritmo do time em campo e municiando os homens de frente.


Graham formava inicialmente a dupla de frente com Bobby Gould, jogador vindo do Coventry e que em breve se tornaria um atacante rodado, passando por quase uma dezena de clubes. Mas com seu recuo para o meio e a saída de Gould da equipe titular, o espaço estava aberto para uma nova dupla, que combinava o ímpeto e o faro de gol de John Radford com o estilo malicioso e rebelde de Charlie George, novo ídolo da torcida.


Era um time praticamente todo feito em casa. Com exceção de Bob Wilson (que viera do Wolverhampton, mas sem ter feito nenhuma partida pelo time de cima), Frank McLintock, Bob McNab e George Graham, todos os demais titulares haviam crescido em Highbury. Alguns já eram frequentes desde antes de Bertie Mee assumir o posto, enquanto outros ganharam sua primeira chance pouco tempo antes do início da campanha.


Nos braços do povo: Frank McLintock ergue a Copa das Feiras.

Alguns dias depois desta primeira partida, Bob Wilson fraturou o braço e foi substituído pelo jovem Malcolm Webster no gol dos Gunners para a partida de volta, em Belfast. A derrota por 1 a 0 não prejudicou a classificação da equipe, mas não foi um resultado muito bem recebido, dada a fraqueza do adversário. Webster, que já havia falhado duas vezes dias antes numa derrota para o Tottenham pela liga, foi defenestrado da posição.


O PRIMEIRO GRANDE DESAFIO


A forma indiferente do time naquele início de temporada causou preocupação em vista da força do próximo adversário europeu, o tradicional Sporting de Lisboa – que cinco anos antes havia conquistado a Recopa. Mas Geoff Barnett, trazido do Everton para assumir a camisa 1 na ausência de Bob Wilson, deu conta do recado no jogo de ida no Alvalade. Os Gunners seguraram o 0 a 0 e levaram a decisão para Highbury.



O time dos Leões era bastante experiente, incluindo muitos nomes que estiveram com a seleção portuguesa na Copa do Mundo de 1966 em solo inglês – como os zagueiros Baptista e José Carlos, o lateral Hilário e o ponteiro Peres (que chegaria a jogar no Brasil e ser campeão brasileiro com o Vasco em 1974) – e algumas boas revelações, como o goleiro Vítor Damas. Mas, jogando em seus domínios, o Arsenal se impôs numa bela vitória.


Barnett, que defendera um pênalti cobrado por Peres na partida de ida, outra vez passou sem ser vazado. E o time encaminhou a classificação já no primeiro tempo: John Radford abriu o placar aos 20 minutos e George Graham ampliou pouco antes do intervalo. Na etapa final, outro gol de Graham encerrou a contagem, um tranquilo 3 a 0 que levava o clube pela primeira vez além de uma segunda eliminatória europeia.


Nas oitavas de final, porém, o Arsenal encontraria sérias dificuldades para dobrar o Rouen, time sensação do futebol francês, quarto colocado na liga no ano anterior. O veterano atacante Tomas Pospichal, vice-campeão mundial em 1962 com a Tchecoslováquia, liderava uma equipe bastante jovem, que contava ainda com o zagueiro Patrice Rio (que defenderia a França na Copa de 1978) e o meia – e futuro treinador – Claude Le Roy.


De volta ao gol após a fratura no braço, Bob Wilson ajudou o Arsenal a segurar mais um empate sem gols, agora no Estádio Robert Diochon, levando os Gunners a decidirem novamente seu destino na competição em Highbury, curiosamente em uma data muito pouco usual para as copas europeias: 13 de janeiro, em meio a uma sequência de jogos pela FA Cup que incluiu um replay contra o Blackpool dali a dois dias.


Mas, diferentemente da vitória tranquila contra o Sporting na etapa anterior, os Gunners teriam pela frente um oponente que venderia caro a derrota pelo placar mínimo. O time levou alguns sustos durante a partida. E somente aos 44 minutos do segundo tempo, quando uma desgastante prorrogação já parecia algo iminente, a agonia dos londrinos teve fim graças a um raro gol de cabeça de Jon Sammels.


Aquele triunfo e a classificação não deixaram de ser um alento no momento mais complicado enfrentado pelo Arsenal naquela temporada. Entre 20 de dezembro de 1969 e 21 de fevereiro de 1970, o clube atravessou uma sequência de 10 jogos sem vencer pela liga, além de ter caído logo no primeiro confronto da FA Cup, diante do Blackpool no replay. Mas logo a equipe deslancharia na campanha europeia.


TRITURANDO OS ROMENOS


O sorteio reservou como adversário das quartas de final o Dinamo Bacau, clube ascendente no futebol da Romênia e que contava naquele momento com um dos maiores craques do país até então, o atacante Emerich Dembrowski, principal expoente de uma boa safra de talentos dos auriazuis e que seria titular da seleção de seu país dali a alguns meses na Copa do México, onde inclusive marcaria um gol no Brasil.


George Graham salta para cabecear e marcar na goleada sobre o Dinamo Bacau em Highbury.

O caminho que levara os romenos até ali não havia sido muito difícil, suplantando o Floriana (de Malta) e o Skeid (da Noruega) nas duas primeiras fases. Mas a classificação nas oitavas de final obtida diante dos perigosos escoceses do Kilmarnock (clube que em 1967 chegara às semifinais no mesmo torneio) abriu os olhos dos ingleses. E aquela acabaria sendo, com folga, a vitória mais elástica dos Gunners no placar agregado.


No primeiro jogo, o time precisou enfrentar as hostilidades dos torcedores locais já no ônibus, na chegada ao Estádio Municipal de Bacau. Mas saiu de campo com uma ótima vitória por 2 a 0, gols de Sammels e Radford, ambos na etapa final – os primeiros marcados pelo Arsenal como visitante naquela campanha. Com a pontaria afiada, os Gunners disparariam uma goleada arrasadora na partida de volta, em Highbury, uma semana depois.



Logo aos sete minutos, Radford abriu o placar com uma cabeçada. Charlie George ampliou aos 24 e marcou o terceiro dois minutos depois, completando um chute de Bob McNab. Os romenos descontaram com Petre Baluta, mas pouco antes do intervalo Eddie Kelly recuperou uma bola no meio-campo, desceu pela ponta e cruzou para George Graham concluir, anotando o quarto. E o massacre continuaria pela etapa final.


Aos 14 minutos, Eddie Kelly fez a assistência para Sammels deixar o quinto nas redes de Aristica Ghita. Aos 32, Radford anotou seu segundo no jogo – e o sexto do Arsenal – ao completar passe do zagueiro McLintock. E aos 38, a bola foi outra vez de Kelly para Sammels e de Sammels para o gol, fechando a goleada em 7 a 1, ainda que os mais de 35 mil espectadores demandassem que a lavada prosseguisse até os 10 gols.


“Uma performance poderosa do Arsenal. Eles tentaram todos os truques do manual ao longo da gélida noite e quase tudo funcionou enquanto eles suplantaram seus oponentes com habilidade e velocidade largamente superiores”, escreveu John Hennessy em sua crônica da partida para o jornal The Times. A atuação categórica fez com que os Gunners enfim começassem a acreditar que poderiam levantar o caneco europeu.


VARRENDO O AJAX DE CRUYFF


Um ataque aéreo dos Gunners contra o Ajax em Highbury.

Mas entre o sonho e glória haveria dois enormes adversários. O primeiro deles, nas semifinais, era nada menos que o Ajax comandado em campo por um certo Johan Cruyff, 23 anos, prestes a explodir no cenário europeu. Os Godenzonen haviam chegado à decisão da Copa dos Campeões na temporada anterior, caindo para o Milan. E, a partir do ano seguinte, iniciariam seu histórico tricampeonato no principal torneio do continente.


Nove dos 11 titulares daquele esquadrão dirigido por Rinus Michels que dentro de pouco mais de um ano derrotaria o Panathinaikos não muito longe dali, em Wembley, para levantar seu primeiro título europeu pisaram o gramado de Highbury naquela noite de 8 de abril de 1970. Entre eles, nomes como Wim Suurbier, Piet Keizer, Barry Hulshoff e Velibor Vasovic, além do jovem Ruud Krol – que seria desfalque na final contra os gregos.


Mas quem mostraria um futebol de campeão naquela ocasião seria o Arsenal, que partiria para cima dos holandeses e abriria a contagem logo aos 16 minutos: Charlie George pegou um rebote da defesa no lado esquerdo do ataque e arriscou um chutaço de fora da área que o goleiro Gert Bals nem viu por onde entrou. A vantagem no placar desatava a celebração em Highbury, mas o jogo chegaria a ter contornos dramáticos.



Ainda no primeiro tempo, Cruyff teve excelente chance para empatar a partida e complicar a vida dos Gunners no duelo ao driblar Bob Wilson e tocar para o gol. Mas, enquanto ele já saía para celebrar, Frank McLintock apareceu salvando o tento em cima da linha. A presença providencial do capitão da equipe no lance permitiu que os ânimos não baixassem para a etapa final. E os jogadores voltariam dispostos a ampliar a vantagem.


O Arsenal teria, porém, de esperar até os 35 minutos para balançar de novo as redes, num lance em que Sammels foi premiado pela insistência. O cruzamento veio da esquerda e seu primeiro chute foi travado com as pernas por Gert Bals. A bola então voltou para o meia, que encheu o pé. E não ficaria nisso: três minutos depois, George Graham foi derrubado na área e Charlie George converteu o pênalti, fechando a contagem.


Na partida de volta, em Amsterdã, o Arsenal alinharia aquela que seria sua escalação-base da campanha (e que seria mantida para os dois jogos da decisão). Apesar de sofrer um gol de Gerrie Mühren logo aos 17 minutos, os comandados de Bertie Mee se superaram na combatividade e seguraram a vantagem obtida em casa, carimbando a passagem à final e deixando pelo caminho aquele que já era um dos melhores times da Europa.


Bob Wilson segura o ataque do Ajax em Amsterdã e garante o Arsenal na final.

O adversário na decisão também merecia respeito, sobretudo pela rápida evolução ao longo daquela década, após a chegada do francês Pierre Sinibaldi ao comando da equipe em 1959. Seis anos depois de perder de 10 a 0 para o Manchester United pela Copa dos Campeões em 1956, o Anderlecht já era capaz de eliminar o poderoso Real Madrid no mesmo torneio, além de enfileirar cinco títulos nacionais seguidos, um recorde.


Quando chegaram a aquela final da Copa das Feiras contra o Arsenal, os Mauves já formavam a base da seleção belga que surpreendera nas Eliminatórias da Copa do México, deixando de fora do Mundial as mais cotadas Espanha e Iugoslávia. Com efeito, tempos antes, em setembro de 1964, a Bélgica havia entrado em campo com um time inteiramente formado por jogadores do Anderlecht num amistoso com a Holanda.


E a própria campanha naquele torneio europeu referendava a força do time de Bruxelas. Nas duas primeiras fases, os fracos Valur e Coleraine não foram poupados de grandes goleadas: no placar agregado, os islandeses foram batidos por 8 a 0 e os norte-irlandeses por espalhafatosos 13 a 4. Os dois adversários seguintes seriam superados em um critério recém-instituído para as copas europeias: o gol qualificado.


O time venceu o perigoso Dunfermline – que chegara às semifinais da Recopa na temporada anterior – por 1 a 0 em casa e perdeu por 3 a 2 na Escócia. E pelas quartas de final, derrotou o Newcastle, detentor do título da própria Copa das Feiras, por 2 a 0 em seu estádio e avançou mesmo perdendo por 3 a 1 em St. James’ Park graças a um gol do zagueiro sueco Thomas Nordahl a dois minutos do fim, frustrando a torcida local.


Mas o grande feito viria nas semifinais, diante da poderosa Inter de Milão, que contava com craques do quilate de Alessandro Mazzolla, Giacinto Facchetti, o brasileiro Jair da Costa e o espanhol Luís Suárez. Derrotado em casa por 1 a 0, gol de Roberto Boninsegna, o Anderlecht daria o troco no jogo de volta, arrancando a vaga em pleno San Siro com uma vitória histórica por 2 a 0, gols do holandês Gerard “Pummy” Bergholtz.


A forte equipe do Anderlecht, liderada por Paul Van Himst (com a braçadeira): adversário na decisão.

O time dos Mauves que chegava à final da Copa das Feiras contava com sete jogadores da seleção da Bélgica no Mundial mexicano – entre eles, o atacante Paul Van Himst, considerado por muitos o maior jogador belga de todos os tempos – além de alguns estrangeiros, como o já citado Thomas Nordahl (filho do antigo craque Gunnar Nordahl), o zagueiro congolês Julien Kialunda e o atacante holandês Jan Mulder.


E seria Mulder o destaque do primeiro jogo, em Bruxelas. Cinco minutos depois de Johan Devrindt abrir o placar, aos 25, com chute cruzado, o holandês anotou o segundo escorando de primeira um cruzamento da esquerda. Na etapa final, ele marcaria também o terceiro, recolhendo um chutão do goleiro Jean-Marie Trappeniers, aplicando um chapéu em McLintock e tabelando com Van Himst antes de tocar na saída de Bob Wilson.


O GOL QUE SALVOU A CAMPANHA


Naquela altura, a missão do Arsenal se tornara muito difícil para o jogo de volta. Até que, poucos minutos depois do terceiro gol belga, Bertie Mee resolveu mexer no time. Charlie George deixou o campo dando lugar a um meia-atacante vindo do norte e que se profissionalizara há pouco tempo no clube, estreando pelos Gunners justo naquela campanha, contra o Glentoran na Irlanda do Norte. Seu nome era Ray Kennedy.


Aos 37 minutos, o time trocava passes pelo lado direito, buscando um respiro, até que George Armstrong sofreu falta. Na cobrança, Peter Storey mandou a bola para a área e ela encontrou Kennedy, camisa 15, que em seu primeiro toque na bola apenas escorou o cruzamento de cabeça no canto oposto de Trappeniers. Era o gol da sobrevida, o tento que de repente transformava a reviravolta em Highbury em algo palpável.


O capitão Frank McLintock tinha plena consciência disso. Após o jogo, a caminho dos vestiários, punhos cerrados batendo um contra o outro, ele repetia para si mesmo e para os companheiros: “Nós podemos ganhar”. Na página de esportes da edição do dia seguinte do jornal Daily Mirror, a manchete da crônica da partida fazia um trocadilho com o nome do autor do gol: “A Ray of hope” – “Um raio de esperança”.


John Radford cabeceia para anotar o segundo do Arsenal: título a caminho.

Highbury estava abarrotado de torcedores na partida de volta, numa atmosfera que contribuía para aumentar a confiança do (e no) time. E não tardaria a entrar em erupção. Aos 25 minutos, Radford desceu pela direita e cruzou rasteiro. A bola bateu em Kialunda e saiu para escanteio. O levantamento na área chegou a Storey, que recuou até Eddie Kelly. O meia avançou, driblou um adversário e encheu o pé para abrir o placar.


Pela nova regra que tornava mais valioso o gol marcado por Kennedy em Bruxelas, bastava agora apenas mais um tento para o Arsenal conquistar o título. Para um time que, antes daquela final, havia anotado 17 e sofrido apenas um nas cinco partidas que fizera em seu estádio, a crença em que chegar aos 2 a 0 não passava de questão de tempo era grande. Mas o primeiro tempo terminaria com aquele placar mínimo.


Na volta do intervalo, assim que pisou o gramado, o capitão McLintock virou-se para o Lado Norte, o setor mais inflamado do estádio, e começou a agitar os braços, meio regendo a torcida, meio pedindo para que aumentassem o volume e a intensidade dos gritos. O time retribuiria o esforço em campo, batalhando em busca do segundo gol e também trabalhando para conter o perigoso ataque de um time superior tecnicamente.


Aos 30 minutos, George Graham recolheu uma reposição de bola de Bob Wilson na intermediária do Anderlecht e conduziu o jogo pelo gramado enlameado, tabelando com Bob McNab. Quando a bola voltou ao lateral, ele correu até a linha de fundo e cruzou alto. Radford, que aguardava a bola alçada, então se ergueu, pairou no ar e desferiu uma cabeçada mortal, sem chances para Trappeniers. Enfim, o ansiado segundo gol.


E para que não houvesse mais dúvidas da vontade daquele time em encerrar o incômodo jejum, logo no minuto seguinte veio o terceiro gol. McNab recebeu na lateral, ainda na intermediária do Arsenal, e lançou Charlie George. O jovem atacante ajeitou, livrou-se da marcação e inverteu a jogada para o lado direito pelo alto. Maurice Martens não alcançou, e a bola chegou a Sammels, que dominou no peito e fuzilou Trappeniers.


Nos minutos finais, Radford esteve perto de marcar o quarto, mas o arqueiro belga deteve sua cabeçada numa defesa brilhante. Do outro lado, Mulder quase estragou a festa com um belo voleio, mas a trave evitou que a decisão se estendesse para uma prorrogação. Ao apito final, o gramado de Highbury foi tomado por torcedores, enquanto os campeões se abraçavam. A seca de títulos havia terminado em alto nível.


Em meados de 1969, logo após a perda da Copa da Liga para o Swindon, o capitão McLintock abordara o auxiliar técnico Don Howe pedindo para que fossem retiradas das paredes do estádio as fotos de antigos ídolos do clube, como Joe Mercer, Eddie Hapgood e Alex James, abraçando as pilhas de troféus que haviam acumulado. Para o zagueiro, o passado vitorioso se tornara um peso sobre os ombros dos jogadores daquele time.


Howe retrucou de forma categórica: “Se você quer que os retratos saiam, você precisa substituí-los”. McLintock entendeu o recado. A conquista da Copa das Feiras – à qual se somou a histórica dobradinha com os títulos da liga e da FA Cup no ano seguinte – já permitia que aquela nova geração escrevesse seu nome com letras douradas na história do clube. O Arsenal já não vivia mais dos quadros na parede.

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